
Texto de São José Almeida
Há um eleitorado de esquerda que não se revê no sistema que oscila entre os dez e os vinte por cento
Houve 20.006 eleitores que colocaram nos ombros de Helena Roseta uma enorme responsabilidade moral e histórica. Não que o número seja muito expressivo. Não que seja imensa gente. Mas é realmente muita gente. Tanta que garantiu a eleição de dois vereadores e o quarto lugar entre as forças políticas concorrentes, que pela primeira vez, na capital, não foram só partidos. Mas é seguramente o voto de gente que está farta, que gritou: "Basta!" É certamente o voto de gente que está cansada de ver os partidos do sistema alternarem no poder, dando palmadinhas nas costas uns dos outros e recorrendo sempre ao mesmo tipo de soluções, que dão origem ao mesmo tipo de problemas.
As eleições de Lisboa mostraram como o rei vai nu, como é cristalina a necessidade de mudança da forma de funcionar dos partidos do sistema político. Por um lado, a abstenção atingida de 62,61 por cento mostra como a descrença no sistema político leva à desistência e ao descrédito da própria representatividade eleitoral. Por outro lado, esta actual ordem de coisas é demonstrada pelo mais baixo número de votos colhido pelo PS na capital, 57.907 votos, menos 17 mil que Manuel Maria Carrilho, assim como pela hecatombe que atingiu todos os partidos. PCP (18.681 votos) e BE (13.348 votos) também baixaram drasticamente as votações. O CDS (7258 votos) foi varrido dos paços do concelho e o PSD (30.855 votos) dividiu-se, ficando parte ao lado do anterior presidente da câmara, Carmona Rodrigues (32.734 votos).
O desgaste do sistema político e partidário refém do aparelhismo mais tosco e manobrista viu-se de forma transparente nas eleições para a câmara da capital, mas já se viu também ao nível nacional, na candidatura de Manuel Alegre. E se há desgaste partidário fruto do aparelhismo, há também desgaste partidário fruto da falência de projectos. Não é por acaso que o CDS e o PSD se esboroam, o que é facto é que o programa político em curso pela acção governativa do PS de José Sócrates ocupou o espaço ideológico e as propostas de inspiração neoliberal, que tinham ficado fechadas sob a direcção Durão Barroso-Paulo Portas.
Mas para além da comprovação da crise provocada pelo anquilosamento actual dos partidos o resultado de Lisboa vem na continuidade do resultado para a eleição do Presidente da República, na qual Manuel Alegre, concorrendo também à margem do PS oficial, acabou por obter 20 por cento dos votos. Não é preciso ler nas cartas nem na bola de cristal para perceber que há uma linha de continuidade entre estes dois resultados. Basta apenas recordar, a nível formal, o papel que Helena Roseta teve na candidatura de Manuel Alegre. Mas há claramente uma continuidade ideológica nos dois movimentos. E seguramente uma continuidade de eleitorado.
Há um eleitorado de esquerda que não se revê no sistema que oscila entre os dez e os vinte por cento e que está disponível e quer tomar posição e ter em quem votar, mas que não quer dar o seu mandato a partidos em que não só não se revê, mas cujo modus operandi abomina. Um eleitorado que quer resposta de rigor a problemas concretos. Um eleitorado de esquerda para quem não basta ouvir um político dizer que é de esquerda e que é socialista e depois pôr em marcha um programa de reformas neoliberais centralizadas a nível europeu. Um eleitorado de esquerda que, mais do que palavras balofas sobre a revolução futura, quer ver hoje soluções reais que tenham em conta os interesses das pessoas e dirigentes políticos que giram a sociedade de forma a que todos estejam de igual forma perante a lei, haja bem-estar social e distribuição da riqueza.
É a esse eleitorado que Helena Roseta tem a obrigação moral e histórica de dar resposta. É público que a vereadora agora eleita já disse que vai manter o movimento Cidadãos por Lisboa até às autárquicas de 2009. Mas porquê não lançar novos movimentos de Cidadão por...? Porque não apostar noutras autarquias? E porque não apostar a nível temático e nacional? Porque não lançar o movimento dos Cidadãos pelo Ensino Público? Ou o movimento dos Cidadãos pelo Serviço Nacional de Saúde? Ou o movimento dos Cidadãos pelos Direitos de Género? Ou o movimento dos Cidadãos pelos Direitos dos Imigrantes? Grupos que integrem outros grupos ou personalidades com acção em áreas específicas ou cidadãos que se interessam por certos assuntos e deles percebem, mas que estão entregues à política do sofá lá de casa.
E porque não reunir, federar, todos esses movimentos cívicos e políticos autónomos sob o chapéu-de-chuva de um movimento nacional, que se assuma legalmente como um partido e seja activado para concorrer a eleições? Não é assim, por exemplo, que se faz política em democracias como a dos Estados Unidos? O que impede a sociedade portuguesa de romper com o atavismo de estar agarrada a estruturas partidárias esclerosadas que não resolvem os problemas das pessoas, que deixaram de existir para resolver os problemas das pessoas? Por que razão não pode a sociedade portuguesa avançar para uma prática política em que as pessoas sejam chamadas a participar pelas suas causas, por aquilo com que se identificam e essas várias lutas serem depois agregadas e unidas em plataformas eleitorais e em listas de um partido que funcione como face jurídico-constitucional? Não foi isso que tentou o Bloco de Esquerda quando se fundou, apesar de rapidamente ter evoluído para a fórmula tradicional de partido de poder?
Porque não pode a democracia participativa ser complementar da democracia representativa? Até que ponto assumir uma política de cidadania e de causas não será o passo necessário para ultrapassar a crise de descrédito das formações partidárias existentes e da própria democracia representativa e assegurar a proximidade aos eleitores?
Há oportunidades na história que não se repetem. E a urgência de mudar a forma de fazer política em Portugal ficou mais uma vez expressa nestas eleições.