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A Primavera esmerou-se. Um sol agradável acariciava-nos na esplanada do café à beira da minha porta. A chegada do senhor Antunes, o mais popular dos meus vizinhos, deu ensejo a uma lição sobre Europa e finanças a nós todos que disto pouco ou nada percebemos.
Mais coisa, menos coisa, é assim sem tirar nem pôr:
- Ó sôr Antunes, explique lá isso do Banco Central Europeu aqui à rapaziada do Café.
- Então vá, vá lá, só por esta vez. O BCE é o Banco Central dos Estados da UE que pertencem à zona euro, como é o caso de Portugal.
- E donde veio o dinheiro do BCE?
- O capital social, o dinheiro do BCE, é dinheiro de nós todos, cidadãos da UE, na proporção da riqueza de cada país. Assim, à Alemanha correspondeu 20% do total. Os 17 países da UE que aderiram ao euro entraram no conjunto com 70% do capital social e os restantes 10 dos 27 Estados da UE contribuíram com 30%.
- E é muito, esse dinheiro?
- O capital social era 5,8 mil milhões de euros mas no fim do ano passado foi decidido fazer o 1º aumento de capital desde que há cerca de 12 anos o BCE foi criado, em três fases. No fim de 2010, no fim de 2011 e no fim de 2012, até elevar a 10,6 mil milhões o capital do banco.
- Então, se o BCE é o banco destes Estados pode emprestar dinheiro a Portugal, não? Como qualquer banco pode emprestar dinheiro a um ou outro dos seus accionistas.
- Não, não pode.
- ???
- Porquê? Porque... porque, bem... são as regras.
- Então, a quem pode o BCE emprestar dinheiro?
- A outros bancos, já se vê, a bancos alemães, bancos franceses ou portugueses.
- Ah percebo, então Portugal, ou a Alemanha, quando precisam de dinheiro emprestado não vão ao BCE, vão aos outros bancos que por sua vez vão ao BCE e tal.
- Pois.
- Mas para quê complicar? Não era melhor Portugal ou a Grécia ou a Alemanha irem directamente ao BCE?
- Não. Sim. Quer dizer... em certo sentido... mas assim os banqueiros não ganhavam nada nesse negócio!
- ??!!..
- Sim, os bancos precisam de ganhar alguma coisinha. O BCE de Maio a Dezembro de 2010 emprestou cerca de 72 mil milhões de euros a países do euro, a chamada dívida soberana, através de um conjunto de bancos XPTO, a 1% de juros e esse conjunto de bancos XPTO emprestaram ao Estado português e a outros Estados a 6 ou 7%.
- Mas isso assim é um "negócio da China"! Só para irem a Bruxelas buscar o dinheiro!
- Neste exemplo, ganharam uns 3 ou 4 mil milhões de euros. E não têm de se deslocar a Bruxelas, nem precisam de levantar o rabo da cadeira. E qual Bruxelas qual carapuça. A sede do BCE é na Alemanha, em Frankfurt, onde é que havia de ser?
Banco Central Europeu (BCE)
- Mas, então, isso é um verdadeiro roubo... com esse dinheiro escusava-se até de cortar nas pensões, no subsídio de desemprego ou de nos tirarem o 13º mês, que já dizem que vão tirar...
- Mas, ó seu Zé, você tem de perceber que os bancos têm de ganhar bem, senão como é que podiam pagar os dividendos aos accionistas e aqueles ordenados aos administradores que são gente muito especializada.
- Mas quem é que manda no BCE e permite um escândalo destes?
- Mandam os governos dos países da zona euro. A Alemanha em primeiro lugar que é o país mais rico, a França, Portugal e os outros países.
- Deixa ver se percebo. Então, os Governos dão o nosso dinheiro ao BCE para eles emprestarem aos bancos a 1% para depois estes emprestarem a 5%, a 6% e a 7% aos Governos donos do BCE?
- É quase isso. Como a Alemanha é rica e pode pagar bem as dívidas, os bancos levam só uns 3%. A nós ou à Grécia ou à Irlanda que estamos de corda na garganta e a quem é mais arriscado emprestar é que levam juros a 6%, a 7% ou mais.
- Nós somos os donos do dinheiro e nós não podemos pedir ao nosso banco...
- Nós, nós, qual nós? Qualquer, Portugal ou a Alemanha, é composto por gentinha vulgar e por pessoas importantes. Você quer comparar um borra-botas qualquer que ganha 400 ou 600 euros por mês ou um calaceiro que anda para aí desempregado com um grande accionista que recebe 5 ou 10 milhões de dividendos por ano, ou com um administrador duma grande empresa ou de um banco que ganha, com os prémios a que tem direito, uns 50, 100, ou 200 mil euros por mês. Não se pode comparar.
- Mas, e os nossos Governos aceitam uma coisa dessas?
- Os nossos Governos, os nossos Governos... mas o que é que os governos podem fazer? Por um lado, são, na maior parte, amigos dos banqueiros ou estão à espera dos seus favores, de um empregozito razoável quando lhes faltarem os votos. Em resumo, não podem fazer nada, senão quem é que os apoiava?
- Mas que porra de gaita! Então eles não estão lá eleitos por nós?
- Em certo sentido, sim, é claro, mas depois... quem tem a massa é que manda. Não viu isto da maior crise mundial de há um século para cá? Essa coisa a que chamam sistema financeiro que transformou o mundo da finança num casino mundial como os casinos nunca tinham visto nem suspeitavam e que ia levando os EUA e a Europa à beira da ruína? É claro, essas pessoas importantes levaram o dinheiro para casa e deixaram a gentinha que tinha metido o dinheiro nos bancos e nos fundos a ver navios. Os governos, então, nos EUA e cá na Europa, para evitar a ruína dos bancos tiveram que repor o dinheiro.
- E onde o foram buscar?
- Onde havia de ser!? Aos impostos, aos ordenados, às pensões. Donde é que havia de vir o dinheiro do Estado?...
- Mas meteram os responsáveis na cadeia?
- Na cadeia? Que disparate. Então, se eles é que fizeram a coisa, engenharias financeiras sofisticadíssimas, só eles é que sabem aplicar o remédio, só eles é que podem arrumar a casa. É claro que alguns mais comprometidos, como Raymond McDaniel, que era o presidente da Moody's, uma dessas agências de rating que classificaram a credibilidade de Portugal para pagar a dívida como lixo e atiraram com o país ao tapete, foram passados à reforma. O Sr. McDaniel é uma pessoa importante, levou uma indemnização de 10 milhões de dólares a que tinha direito.
- Ó sôr Antunes, então como é? Comemos e calamos?!
- Isso já não é comigo, eu só estou a explicar...
Comentário
O que o Sôr Antunes não disse, provavelmente porque não sabia, é que a esmagadora maioria da moeda em circulação é virtual, criada tanto pelo Banco Central Europeu como pelos Bancos Comerciais, na forma de depósitos à ordem (cujas reservas legais são actualmente de 2%).
Nos empréstimos do Banco Central Europeu (BCE) aos bancos comerciais há três modalidades:
a) Operações de Open-Market: o BCE compra títulos aos Bancos Comerciais e credita as contas de depósitos à ordem dos respectivos Bancos Comerciais. Este «dinheiro» é criado, a partir do nada, pelo BCE com apenas alguns toques no teclado de um computador.
b) A facilidade permanente de cedência de liquidez overnight: essencialmente um empréstimo do BCE aos Bancos Comerciais de um dia para o outro.
c) Operações de redesconto.
Em suma, quando os Bancos Comerciais se queixam da «dificuldade em se financiarem», era obrigação de todos os cidadãos europeus irem à procura dos banqueiros e respectivos testas de ferro, incluindo políticos corruptos e jornalistas e opinadores venais, e aplicar-lhes um dos seguintes correctivos:
1 - Decapitação
2 - Defenestração
3 - Desmembramento
4 – Empalamento
5 – Lapidação
6 – Esquartejamento
7 – Morte na fogueira
8 – Etc., Etc., Etc...
Não! Esta não é a face de um banqueiro ladrão, de um político corrupto ou de um jornalista venal, a sofrer as agruras acima descritas (ante fosse!). Esta é a face de um cidadão europeu a quem os bancos estão a regredir o nível de vida em cerca de 100 anos.
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