«
A CONSCIÊNCIA do Holocausto» observa Boas Evron, «o respeitado escritor israelita, é na realidade «
uma doutrinação oficial, propagandística, um chorrilho de chavões e uma perspectiva falsa do mundo, cujo verdadeiro objectivo não é de modo algum compreender o passado, mas manipular o presente.» Em si, o holocausto nazi não está ao serviço de nenhum desígnio político. Tanto pode gerar criticas como apoio à política israelita. Porém, refractada através de um prisma ideológico, «a memória do extermínio nazi» acabou por servir - nas palavras de Evron - «como um instrumento poderoso nas mãos da liderança israelita e dos judeus no estrangeiro». O holocausto nazi passou a ser o Holocausto.
Dois dogmas centrais enquadram a ideia do Holocausto: 1) O Holocausto constitui um acontecimento histórico categoricamente único; 2) O Holocausto constitui o clímax de um ódio irracional e eterno dos não judeus pelos judeus. Nenhum destes dogmas esteve presente em qualquer discurso público antes da guerra de Junho de 1967; e, embora se tenham tornado as peças essenciais da literatura do Holocausto, eles não figuram sob forma alguma em nenhum trabalho científico sério sobre o holocausto nazi. Por outro lado, ambos os dogmas se apoiam em tradições arraigadas do judaísmo e do sionismo.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o holocausto nazi não era visto como um acontecimento exclusivamente respeitante aos judeus - e muito menos único, sob o ponto de vista histórico. Os meios judaicos americanos em especial esforçavam-se por colocá-lo num contexto universalista. No entanto, depois da guerra de Junho, a Solução Final nazi foi radicalmente reenquadrada. «A primeira e mais importante alegação a surgir da guerra de 1967 e a tomar-se emblemática do judaísmo americano», recorda Jacob Neusner, foi que «
o Holocausto (...) foi único, sem paralelo na história humana». Num estudo esclarecedor, o historiador David Stannard ridiculariza «a pequena indústria dos hagiógrafos do Holocausto, que defendem o carácter único da experiência judaica com toda a energia e engenho dos zelotas ideológicos». Bem vistas as coisas, o dogma do carácter único não faz sentido.
Ao nível mais básico, todos os acontecimentos históricos são únicos; quanto mais não seja por razões de tempo e lugar, e todos os acontecimentos históricos assumem características distintas, assim como características comuns a outros acontecimentos históricos.
A anomalia do Holocausto é que o seu carácter único é considerado absolutamente decisivo. Que outro acontecimento histórico haverá, cabe perguntar, que seja essencialmente considerado em função da sua categoria única? Normalmente, as características distintivas do Holocausto são isoladas de forma a colocar-se o acontecimento numa categoria totalmente à parte. Nunca se toma claro, porém, por que razão os muitos aspectos comuns a outros acontecimentos devem ser vistos, comparativamente, como triviais.
Todos os que escrevem sobre o Holocausto afirmam que é único, mas poucos ou nenhum explicam porquê. Sempre que alguém refuta empiricamente um argumento a favor do seu carácter único, logo surge novo argumento contrário. Os resultados, segundo Jean-Michel Chaumont, são uma multiplicidade de argumentos em conflito uns com os outros e anulando-se entre si: «O conhecimento não se acumula. Pelo contrário, para reforçar um argumento anterior, volta-se sempre ao zero.» Por outras palavras:
o carácter único é um dado adquirido na ideia do Holocausto a tarefa definida é prová-lo, já que negá-lo equivale a negar o Holocausto. Talvez o problema esteja na premissa e não na prova. Mesmo que o Holocausto fosse único, que importância teria isso? De que forma alteraria a nossa compreensão sabermos que o holocausto nazi não foi a primeira, mas a quarta ou quinta catástrofe numa série de outras catástrofes comparáveis?
A aquisição mais recente na corrida ao carácter único do Holocausto é o livro de Steven Katz - The Holocaust in Historical Context. Citando cerca de 5000 títulos no primeiro volume dos três que estão projectados para este estudo, Katz analisa toda a história humana para provar que «
o Holocausto é fenomenologicamente único porque nunca antes nenhum Estado tinha decidido, quer em termos de intenções, quer como política realizada, aniquilar fisicamente todos os homens, mulheres e crianças pertencentes a determinado povo». Clarificando a sua tese, Katz explica: [...] «Um acontecimento histórico com características distintas é um acontecimento histórico distinto». Para evitar confusões, Katz insiste na explicação, dizendo que usa o termo fenomenologicamente «num sentido não-husserliano, não-shutzeano, não-scheleriano, não-heideggeriano, não-merleau-pontyano». Tradução: A tarefa de Katz é um disparate fenomena1. Mesmo que a tese central de Katz fosse comprovada, coisa que não acontece, isso apenas demonstraria que o Holocausto tinha em si características distintas. O contrário seria de admirar. Chaumont depreende que o estudo de Katz é na realidade «ideologia» mascarada de «ciência.
Pouca diferença separa a afirmação do carácter único do Holocausto do argumento segundo o qual. o Holocausto não pode ser apreendido racionalmente. Se o Holocausto não tem precedentes na história, coloca-se acima dela e portanto não é possível a história compreendê-lo.
O Holocausto é único por ser inexplicável e é inexplicável porque é único.
Classificada por Novick como a «sacralização do Holocausto», esta mistificação é regularmente alimentada por Elie Wiesel. Para este autor, observa Novick com razão,
o Holocausto é efectivamente uma religião do «mistério». Por conseguinte, Wiesel apregoa que. o Holocausto «conduz ao obscuro», «nega todas as respostas», «
situa-se fora da história, e está mesmo para além dela», «
é refractário ao conhecimento e à descrição», «
não pode ser explicado nem visualizado», «
nunca poderá ser entendido ou transmitido», assinala uma «destruição da história» e uma «
mutação à escala cósmica». Só o sobrevivente-sacerdote (leia-se: só Wiesel) está apto a vislumbrar o seu mistério. E no entanto, o mistério do Holocausto, confessa Wiesel, «não é comunicável»; «Nem sequer podemos falar sobre ele». Assim, pela quantia habitual de 25.000 dólares (além da limusina com motorista), Wiesel explica nas suas conferências que
o «segredo» da verdade de Auschwitz «reside no silêncio».
A compreensão racional do Holocausto equivale, nesta perspectiva, a negá-lo. Porque a racionalidade leva-nos a negar o carácter único e o mistério do Holocausto.
E comparar o Holocausto com os sofrimentos de outros povos constitui, para Wiesel, uma «traição total à história judaica». Há anos, um jornal nova-iorquino parodiava em parangonas: «Michael Jackson e 60 milhões de outras vítimas morrem num holocausto nuclear». A página das cartas de leitores reproduzia um protesto indignado de Wiesel: «Como ousam classificar de Holocausto algo que aconteceu ontem? Só houve um Holocausto (...). Nas suas memórias, Wiesel, provando que a realidade pode superar a ficção,
censura Shimon Peres por este se referir «sem hesitação aos "dois holocaustos" do século xx: Auschwitz e Hiroxima. Não o devia fazer.» Um dos chavões preferidos de Wiesel afirma que «a universalidade do Holocausto reside no seu carácter único». Mas se é incomparavelmente e incompreensivelmente único, como poderá ter uma dimensão universal?
O debate sobre o carácter único do Holocausto é estéril. O certo é que
a reivindicação desse carácter único acabou por constituir uma forma de «terrorismo intelectual» (Chaumont). Os que recorrem aos métodos comparativos normais na investigação académica têm de começar por tomar mil e uma precauções para não serem acusados de «banalizar o Holocausto».
Um corolário da afirmação do carácter único do Holocausto é que constituiu um mal único.
Por mais terríveis que sejam os sofrimentos dos outros não se lhe podem igualar. Os que defendem o carácter único do Holocausto recusam em geral esta implicação, mas os seus protestos não convencem ninguém.
Reivindicar o carácter único do Holocausto é intelectualmente estéril e moralmente indigno e no entanto eles persistem em fazê-lo. Pergunta-se: porquê? Em primeiro lugar, porque
um sofrimento que seja único confere direitos únicos. O mal inigualável do Holocausto, segundo Jacob Neusner, não só coloca os judeus numa posição à parte, como também lhes dá «um direito sobre os outros». Para Edward Alexander, o carácter único do
Holocausto é um «capital moral»; os judeus devem «reivindicar a soberania» sobre «esta propriedade valiosa».
Com efeito, o carácter único do Holocausto – esta «reivindicação» em relação aos outros, este «capital moral» - representa para Israel um álibi precioso. «A singularidade dos sofrimentos dos judeus», afirma o historiador Peter Baldwin, «reforça as reivindicações morais e emocionais que Israel pode chamar a si (...) perante as outras nações.» Assim, segundo Nathan Glazer, o Holocausto, que apontava para o «peculiar carácter distintivo dos judeus»,
deu-lhes «o direito de se considerarem especialmente ameaçados e especialmente dignos de todos os esforços no sentido da sua sobrevivência.». Para citar um exemplo típico, todos os relatos sobre a decisão de Israel de desenvolver armas nucleares evocam o espectro do Holocausto. Como se, a não ser assim, Israel não tivesse recorrido ao nuclear!
Há ainda outro factor. A reivindicação do carácter único do Holocausto é uma reivindicação do carácter único dos judeus. O que tomou o Holocausto único não foram os sofrimentos dos judeus mas o facto de os judeus sofrerem. Ou:
o Holocausto é especial porque os judeus são especiais. Por isso, Ismar Schorsch, chanceler do Seminário Teológico Judaico, ridiculariza a reivindicação do carácter único do Holocausto como «uma versão secular de mau gosto sobre a Eleição». Elie Wiesel não é tão veemente sobre a singularidade dos judeus como sobre a do Holocausto. «
Tudo em nós é diferente.» Os judeus são «ontologicamente» excepcionais. Ponto culminante de um ódio milenar dos gentios em relação aos judeus, o Holocausto não só atestou o sofrimento único dos judeus, como o seu carácter único.
Durante a Segunda Guerra Mundial e depois dela, relata Novick, «quase ninguém no seio do governo [americano] - e praticamente ninguém fora dele, judeu ou não - teria compreendido que se falasse do "abandono dos judeus"». Deu-se o contrário depois de Junho de 1967. «O silêncio do mundo», a «indiferença do mundo», o «abandono dos judeus»; estes termos tornaram-se recorrentes no «discurso do Holocausto».
Recuperando um preceito sionista, o sistema do Holocausto apresenta a Solução Final de Hitler como o clímax de um ódio milenar dos não judeus contra os judeus. Estes pereceram porque os gentios, quer fossem criminosos, quer colaboradores passivos, os queriam mortos.
«O mundo livre e "civilizado"», segundo Wiesel, entregou os judeus «ao carrasco. Havia os que matavam - os homicidas - e havia os que ficaram em silêncio». As provas históricas de um impulso assassino dos não judeus são nulas.
O esforço ingente de Daniel Goldhagen para provar uma variante desta alegação em Hitler's Willing Executioners pouco mais foi do que cómico. No entanto, a sua utilidade política é considerável. Por sinal, note-se que na realidade a teoria do «anti-semitismo eterno» leva água ao moinho do anti-semitismo. Como afirma Acendt em The Origins of Totalitarianism, «é um dado adquirido que esta doutrina foi adoptada pelos anti-semitas convictos; dá-lhes o melhor álibi possível para todos os horrores. É verdade que a humanidade tem insistido, há mais de 2000 anos, em matar judeus, pelo que as matanças dos ditos são uma ocupação normal, e até humana, e o ódio aos judeus é justificado sem necessidade de argumentos. O aspecto mais surpreendente desta explicação é que tem sido adoptada por muitos historiadores imparciais e por um número ainda maior de judeus.»
Adoptado pela indústria do Holocausto,
o dogma sobre o ódio eterno dos não judeus tem servido para justificar a necessidade de um Estado judaico e para explicar a hostilidade em relação a Israel. O Estado judaico é a única salvaguarda contra o próximo (inevitável) surto de anti-semitismo homicida; inversamente, o anti-semitismo homicida está por trás de todos os ataques e até das manobras defensivas contra o Estado judaico. Para explicar as criticas a Israel, a ficcionista Cynthia Ozick tem uma resposta pronta: «
O mundo quer erradicar os judeus. (...) O mundo sempre quis erradicar os judeus.» Se todo o mundo quer a morte dos judeus, realmente é de admirar estarem ainda vivos - e, ao contrário de grande parte da humanidade, não propriamente a morrer de fome.
Este dogma também conferiu carta branca a Israel: como os não judeus estão sempre prontos a matar os judeus, estes têm todo o direito de se proteger, sempre que achem adequado.
Qualquer expediente a que os judeus possam recorrer, mesmo a agressão e a tortura, constitui legítima autodefesa. Deplorando a «lição do Holocausto» do eterno ódio dos gentios, Boas Evron observa que «é realmente equivalente a uma paranóia deliberadamente construída. (...) Esta mentalidade (...)
desculpa à partida qualquer tratamento desumano em relação aos não judeus, porque a mitologia que prevalece é a de que 'todos colaboraram com os nazis na destruição dos judeus' e portanto tudo é permitido aos judeus na sua relação com os outros povos.»
No sistema do Holocausto, não só é impossível erradicar o anti-semitismo dos gentios, como ele é sempre irracional. Goldhagen, indo mais longe que os sionistas clássicos, sem falar dos dados científicos correntes, apresenta um anti-semitismo «que nada tem a ver com os judeus reais», «não constituindo fundamentalmente uma reacção a qualquer avaliação objectiva dos actos dos judeus» e «independente da natureza e actos dos judeus». Uma patologia mental dos gentios, cujo «domínio» é «o espírito». Impelidos por «argumentos irracionais», os anti-semitas, segundo Wiesel, «ressentem-se da simples existência dos judeus.» Como nota ironicamente o sociólogo John Murray Cuddihy, «
não só o que os judeus fazem ou não fazem não tem nada a ver com o anti-semitismo, como qualquer tentativa de explicar o anti-semitismo através de qualquer responsabilidade dos judeus é em si um exemplo de anti-semitismo». Não se defende, como é evidente, que o anti-semitismo seja aceitável, nem se atribui aos judeus a culpa pelos crimes de que foram alvo, mas o anti-semitismo desenvolve-se num contexto histórico específico, com todo um jogo de interesses cruzados. «
Uma minoria talentosa, bem organizada e bastante bem sucedida pode suscitar conflitos derivados de tensões objectivas entre grupos», salienta Ismar Schorsch, embora esses conflitos estejam «às vezes envoltos em estereótipos anti-semíticos.»
A essência irracional do anti-semitismo gentio infere-se indutivamente da essência irracional do Holocausto. A Solução Final de Hitler carecia simplesmente de racionalidade - era «o mal pelo mal», a matança em massa «sem objectivos»; marcou o culminar do anti-semitismo gentio; portanto o anti-semitismo gentio é essencialmente irracional. Tomadas separadamente ou em conjunto, estas proposições não resistem ao exame mais superficial. No entanto, politicamente o argumento é muito útil.
Ao conferir inocência total aos judeus, o dogma do Holocausto iliba Israel e os judeus americanos de qualquer censura legítima. A hostilidade árabe, a hostilidade afro-americana, «não são fundamentahnente uma reacção a qualquer avaliação objectiva dos actos dos judeus» (Goldhagen).
Considere-se o que diz Wiesel sobre as perseguições aos judeus: «Durante dois mil anos (...) sempre fomos ameaçados. (...) Porquê? Por coisa nenhuma.» Sobre a hostilidade árabe contra Israel: «Por sermos o que somos e por aquilo que a nossa pátria de Israel representa - o cerne das nossas vidas, o sonho dos nossos sonhos - quando os nossos inimigos tentam destruir-nos, fazem-no tentando destruir Israel.» Sobre a hostilidade dos negros em relação aos judeus americanos: «Os que se inspiram em nós não nos agradecem, antes nos atacam. Estamos numa situação muito difícil.
Voltamos a ser bodes expiatórios de todos os outros. (...)
Ajudámos os negros; sempre os ajudámos. (...) Tenho pena deles. Deviam aprender uma coisa connosco: gratidão. Nenhum povo no mundo conhece a gratidão tanto como nós; sempre fomos gratos.»
Sempre castigados, sempre inocentes: é este o fardo dos judeus.
O dogma sobre o ódio eterno dos gentios também justifica o dogma complementar do carácter único do Holocausto. Se o Holocausto marcou o clímax de um ódio milenar dos gentios aos judeus, a perseguição aos não judeus no Holocausto foi simplesmente acidental e meramente episódica, em termos históricos. Portanto, de todos os pontos de vista, os sofrimentos dos judeus durante o Holocausto foram únicos.
Finalmente,
os sofrimentos dos judeus foram únicos porque os judeus são únicos. O Holocausto foi único porque não foi racional. Em última análise, na sua origem esteve uma paixão irracional, quase inumana. O mundo gentio odiava os judeus por inveja, despeito: ressentimento. O anti-semitismo, segundo Nathan e Ruth Ann Perlmutter, resultou da «inveja e ressentimento dos não judeus por os judeus rivalizarem com os cristãos no mercado. (...)
Os gentios, numerosos e menos competentes, invejavam os judeus, que eram em menor número e mais capazes.» Ainda que negativamente, o Holocausto confirmava pois que os judeus eram os eleitos. Por serem melhores, ou mais bem sucedidos, os judeus foram alvo da ira dos não judeus, que acabaram por massacrá-los.
Num aparte breve, Novick pergunta-se: «O que seria o discurso sobre o Holocausto na América» se Elie Wiesel não fosse o seu «principal intérprete»? A resposta não é difícil: antes de Junho de 1967 a mensagem universalista de Bruno Bettelheim, sobrevivente dos campos de concentração, encontrava eco junto dos judeus americanos. Depois da guerra de Junho foi preterida em favor de Wiesel.
A importância de Wiesel está em função da sua utilidade ideológica. O carácter único dos sofrimentos dos judeus/o carácter único dos judeus, a culpa permanente dos gentios/a inocência dos judeus, a defesa incondicional de Israel/a defesa dos interesses judaicos. Elie Wiesel é o Holocausto.
.