Aristides de Sousa Mendes
Aristides condicionava a emissão de vistos
e passaportes ao pagamento de verbas
Em carta a Maria Barroso, presidente da «Fundação Aristides de Sousa Mendes»,
Embaixador desmistifica a «lenda» de Aristides de Sousa Mendes
* Desapareceram misteriosamente dos arquivos do MNE (Ministério dos Negócio Estrangeiros) várias peças dos processos que incriminavam Sousa Mendes.
* Aristides de Sousa Mendes acumulou numerosos processos disciplinares desde o longínquo ano de 1917, na República, até 1940.
* Aristides de Sousa Mendes, como foi denunciado pelos serviços da Embaixada Britânica, cobrava dinheiro pela emissão de vistos e passaportes.
Terceiro classificado por votação dos telespectadores no concurso promovido pela RTP «Os Grandes Portugueses», e surgindo agora em filme, a figura de Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus no período da II Grande Guerra, continua envolta em muitos mistérios e alguma polémica.
Para uns, Sousa Mendes é recordado como «um homem bom e justo» que, em Junho de 1940, contrariando as ordens do Governo de Lisboa, emitiu vistos e passaportes e, nalguns casos, chegou mesmo a atribuir falsamente a identidade portuguesa a milhares de foragidos, sobretudo judeus, que pretendiam, a todo o custo, alcançar lugares tidos por seguros. Como Portugal, que Salazar conseguiu manter neutral no conflito.
Para outros, o cônsul está longe de justificar o papel de «herói» que muitos lhe atribuem e, aqui e ali, tentam repor a verdade àquilo a que chamam a «falsificação da História» e, através de factos, muitos deles documentados, desmistificam a «lenda» Sousa Mendes. Bastará uma pesquisa atenta no arquivo do MNE ao processo do antigo cônsul - apesar de muitas peças do seu "dossier" terem misteriosamente desaparecido, sem que até hoje ninguém tenha procurado investigar quem foi o autor (ou autores) do "desvio" para que algumas «verdades» deixem de o ser.
O irmão gémeo de Aristides - César Sousa Mendes
Ao contrário do seu irmão gémeo César, que também fez carreira na diplomacia tendo alcançado o posto de Ministro Plenipotenciário de 2.ª classe, Aristides arrastou-se entre postos consulares de pequeno relevo, foi acumulando processos e mais processos disciplinares desde o longínquo ano de 1917, na I República, até 1940, tendo acabado por passar à disponibilidade a aguardar aposentação, mas continuando a auferir a totalidade do vencimento correspondente à sua categoria (1.595$30). O que desde logo «mata» a tese dos que teimam em acusar Salazar de ter «perseguido» o cônsul e de o ter «obrigado» a «morrer na miséria». Pelo contrário, o então Presidente do Conselho mostrou-se benevolente com Aristides em muitas alturas, nomeadamente quando, contrariando o parecer do Conselho Disciplinar do MNE que, na sequência de mais um processo disciplinar, propôs a pena de descida de categoria do cônsul, apenas determinou a sua inactividade por um ano, com vencimento de categoria reduzido a metade, mas recebendo a totalidade do salário correspondente ao exercício.
Outra verdade que tem sido ocultada pelos defensores de Aristides Sousa Mendes: o cônsul condicionava a emissão de vistos e passaportes ao pagamento de verbas e à obrigatoriedade de contribuição para um estranho «fundo de caridade» por si próprio instituído e gerido, situação que viria a ser denunciada junto do MNE quer pelos serviços da embaixada britânica quer por muitos dos que beneficiaram das «facilidades» de Mendes.
A casa de Sousa Mendes em Cabanas do Viriato
Também esclarecedora para a verdade sobre Sousa Mendes é a carta que o Embaixador Carlos Fernandes (*) dirigiu, em Maio de 2004, a Maria Barroso Soares, presidente da entretanto criada «Fundação Aristides de Sousa Mendes», quando esta pretendeu promover uma homenagem nacional, custeada com dinheiros públicos, ao antigo cônsul.
Embaixador Carlos Augusto Fernandes, licenciado em Direito, com distinção, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Entrou no MNE em Abril de 1948 como adido de Legação. Foi cônsul de Portugal em Nova Iorque e Encarregado de Negócios no Paquistão, Montevideu (Uruguai) e Venezuela. Foi Conselheiro da Legação Portuguesa na NATO (Paris), Director Económico do MNE, Director dos Serviços Jurídicos e Tratados do MNE e Embaixador de Portugal no México, Holanda e Turquia.
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Lisboa, 5/5/04
Senhora Dra. Maria Barroso Soares,
Um antigo embaixador de Israel em Portugal, que foi «instrumental»» na mitificação de Aristides Sousa Mendes, publicou há dois dias no Diário de Notícias, a propósito do aniversário daquele antigo cônsul, um artigo de elogio a Sousa Mendes, reincidindo em duas mentiras que foram fundamentais para aquela mitificação:
a) que foi expulso da carreira diplomática;
b) que morreu na miséria (depreendendo-se que por ter sido expulso da carreira diplomática e sem vencimento).
Ora, tanto quanto eu pude averiguar, primeiro, Sousa Mendes nunca foi da carreira diplomática, pertencendo sempre à carreira consular, que era diferente, e, em princípio, mais rendosa; depois, nunca dela foi expulso: como conclusão de um 5.º processo disciplinar, foi colocado na inactividade por um ano, com metade do vencimento de categorias e, depois desse tempo, aguardando aposentação com o vencimento da sua categoria (1.595$30 por mês) até morrer, sem nunca ter sido aposentado, situação mais favorável do que a aposentação.
Portanto, se morreu na miséria, ou pelo menos com grandes dificuldades financeiras, isso deve-se a outros factores que não à não recepção do seu vencimento normal em Lisboa. Demais, A. Sousa Mendes viveu sempre com grandes dificuldades financeiras.
É óbvio que, quem tenha 14 filhos da mulher, uma amante e uma filha da amante não sairá nunca de grandes dificuldades financeiras, salvo se tiver outros rendimentos significativos, além do vencimento de cônsul.
Aristides de Sousa Mendes e parte da sua prole
Vi pelo artigo acima referido que a Sr.ª Dr.ª. M. Barroso é presidente da Fundação A. S. Mendes, e só por isso lhe escrevo esta carta e lhe remeto os elementos de informação anexos.
Eu escrevi sobre Sousa Mendes, de forma simpática, num livro publicado há dois anos (Recordando o caso Delgado e outros casos, Universitária Editora, Lisboa, 2002) de págs. 27 a 30, porque o conheci e tive ocasião de ajudar dois dos seus filhos, um em Lisboa e outro depois em Nova Iorque quando lá era cônsul.
Nada me move contra A. Sousa Mendes, antes o contrário, mas não posso pactuar com a mentira descarada e generalizada. Salazar é atacável por várias razões, mas não por ter «perseguido» A. Sousa Mendes, que, aliás, teve problemas disciplinares em todos os regimes de 1917 a 1940.
Quando fui director dos Serviços Jurídicos e de Tratados do MNE tive de estudar o último processo disciplinar de A. Sousa Mendes, de cuja pasta retiraram já muitas peças.
Por outro lado, o meu amigo Prof. Doutor Joaquim Pinto, sem eu saber, fez um estudo bastante completo sobre A. Sousa Mendes, e com notável imparcialidade.
Eu não pretendo vir a público atacar ou defender A. Sousa Mendes, e, por isso, nem penso rectificar o artigo do embaixador de Israel, mas em abono da verdade, e para seu conhecimento, entendo ser meu dever remeter-lhe cópia do estudo e notas em anexo, de que poderá fazer o uso que entender.
Com respeitosos cumprimentos,
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Algumas Notas sobre Aristides Sousa Mendes
Num «memorandum» da Embaixada Britânica, datado de 20/6/40, diz-se:
«O cônsul de Portugal em Bordéus protela para fora das horas de expediente todos os pedidos de vistos, e cobra por eles taxas extraordinárias. Pelo menos num caso foi ainda o interessado convidado a contribuir para um fundo português de caridade antes de ser-lhe concedido visto».
Processo
Despacho de Salazar preparado pelo Secretário Geral:
«Atendendo a que às infracções cometidas, não tendo em consideração a reincidência, cabe a pena do n.º 8 do artigo 6.º do Regulamento Disciplinar;
Atendendo a que do relatório consta “e o Conselho reconhece a incapacidade profissional do arguido para dirigir consulados, especialmente os da sua categoria”;
Condena o cônsul de 1.ª classe, Aristides Sousa Mendes, na pena de um ano de inactividade com direito a metade do vencimento de categoria, devendo em seguida ser aposentado.
Lisboa, 30 de Outubro de 1940
Salazar».
Imputadas Faltas (Desde Novembro de 1939 a fins de Junho de 1940):
a) desobediência
b) falsificação de escrita
c) abandono do lugar
d) concessão (imputação do Embaixador Britânico, de 20/6/40)
e) vistos a austríacos, espanhóis, luxemburgueses e polacos Atribuiu falsamente a nacionalidade portuguesa ao casal Miny, em 30/5/40.
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Em 18 e 19/6/40, vai a Bayone impondo ao cônsul ali a concessão de vistos, quer de trânsito quer de residência, independentemente de consulta.
Como o cônsul Faria Machado objectasse, afirmou-lhe, falsamente, que recebera instruções nesse sentido e que fora a Bayone expressamente para lhas comunicar.
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Já assim procedera em Novembro de 1939, quando ainda não havia êxodo de França, o qual só começou em Maio/Junho de 1940.
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Não propôs à Secretaria de Estado mudanças das instruções com que depois disse não concordar, nem mudança de posto.
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Justificou a falsificação da identidade dos Miny com o humanitarismo.
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Era já o 4.º processo disciplinar de Aristides (1935, por declarações públicas; de novo em 1935, por irregularidades na contabilidade consular; em 1938, ausentou-se do seu posto na Bélgica e veio a Portugal sem autorização quer da Legação em Bruxelas quer de Lisboa; e ainda outro que foi instruído pelo Dr. Francisco António Correia).
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De 1937 a 1939, consta uma extensa lista de repreensões e censuras. Já em 1917 fora repreendido por se ausentar de Zanzibar.
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O Conselho Disciplinar do MNE propôs a pena de regresso à categoria anterior (cônsul de 2.ª classe), prevista no nº 9.º do artigo 6.º do Regulamento Disciplinar dos F. Civis.
O S. Geral (Teixeira de Sampaio) entendeu diferente. Salazar, dentro
dos seus poderes, despachou a proposta do S. Geral (muito mais benigna).
Isto fez que Sousa Mendes morresse aguardando aposentação, recebendo, depois do ano de inactividade, o seu vencimento por inteiro, como se verifica da declaração que apresentou à Ordem dos Advogados em 25 de Abril de 1946 (1.595$30 por mês) num requerimento que então lhe dirigiu.
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Portugal, os Cônsules, e os Refugiados Judeus (1938-1941)
Texto de
Avraham Milgram
(
Tradução minha)
(...) Uma curta análise das listas e vistos passados por Aristides de Sousa Mendes aos Judeus e não-Judeus em Maio e Junho de 1040, mostra – sem diminuir a grandeza da sua atitude – que o número de vistos concedidos pelo cônsul era menor do que os que são mencionados pela literatura, levantando uma série de questões relativas a Portugal e à entrada de refugiados Judeus.
Foi provavelmente Harry Ezratty o primeiro a mencionar, num artigo publicado em 1964, que Aristides de Sousa Mendes tinha salvo 30,000 refugiados, dos quais 10,000 judeus, um número que desde então tem sido repetido automaticamente por jornalistas e académicos. Ou seja, Ezratty, imprudentemente, pegou no número total de judeus que passaram por Portugal e atribuiu-o ao trabalho de Aristides de Sousa Mendes. De acordo com a lista dos vistos emitidos no consulado de Bordéus, Aristides de Sousa Mendes passou 2,862 vistos entre 1 de Janeiro e 22 de Junho de 1940. A maioria, ou seja, 1,575 vistos, foram passados entre 11 e 22 de Junho, nos últimos dias da sua carreira consular em Bordéus. Nunca saberemos exactamente quantos vistos terá passado nos sub-postos de Bayonnne e na cidade de Hendaye, lugares por onde ele passou ao ser chamado a Lisboa por insubordinação; nestes lugares Aristides passou vistos sem o selo consular e apenas escritos à mão, e portanto não foram registados em lado nenhum.
Por forma a ter uma ideia do exagero no número de judeus que na realidade entraram em Portugal por um lado, e do número de judeus que se acredita terem entrado graças a Sousa Mendes por outro, basta citar que, no relatório do HICEM (organização judaica que ajudava os judeus a emigrar), 1,548 Judeus que vieram para Portugal como refugiados sem vistos para outros países, saíram de navio de Lisboa na segunda metade do ano 1940, e 4,908 Judeus, com a ajuda do HICEM, partiram durante 1941. A este número, devemos acrescentar aproximadamente 2,000 Judeus que vieram directamente de Itália, Alemanha, e de outros países anexados por alemães e possuidores de vistos americanos.
Os «30 mil refugiados» salvos por Aristides de Sousa Mendes
No total, em dezoito meses, de Julho de 1940 Dezembro de 1941, o HICEM tomou conta do transporte por navio de 8,346 Judeus que deixaram Lisboa para países de além-mar. Tudo indica que temos de acrescentar a estes números os Judeus que transitaram e deixaram Portugal pelos seus próprios meios. Mesmo assim, a discrepância entre a realidade e o número de vistos passados por Aristides de Sousa Mendes é grande. (...)
As contribuições para instituições de caridade (de Aristides)
(...) Outro episódio que irritou o MNE (Ministério dos Negócios Estrangeiros), e que finalmente levou Sousa Mendes a ser chamado de volta ao consulado geral, tem a sua origem num memorando enviado pela embaixada britânica em Lisboa ao MNE, queixando-se do comportamento do Cônsul português em Bordéus que pedia taxas extras aos cidadãos britânicos que pediam vistos: O Cônsul Português de Bordéus tem estado a adiar para depois das horas de serviço todos os pedidos de vistos e tem cobrado uma taxa especial; em pelos menos um caso, ao requerente foi também pedido que contribuísse para um fundo de caridade português antes do visto ser concedido. Memorando da Embaixada Britânica em Lisboa de 20 de Junho de 1940, AMNE RC M 779.
Em 1923, enquanto colocado em São Francisco (EUA), Aristides de Sousa Mendes teve um conflito com a comunidade portuguesa local sobre uma contribuição por ele pedida para uma instituição de caridade que os luso-americanos recusaram. O caso, que não chegou a ser reportado ao MNE, chegou à imprensa sob a forma de insultos e o MNE considerou-o um sério erro. (Afonso Rui, Injustiça, pp. 22-26).
Em Bordéus, não foi, portanto, a primeira vez que Aristides de Sousa Mendes se empenhou numa causa caritativa. (...)
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[Leite Pinto] fala, a propósito, na operação de salvamento dos refugiados republicanos espanhóis e dos judeus que, no início da Segunda Guerra Mundial, se acumulavam na fronteira de Irún, na ânsia de salvar as vidas. Vieram embarcados nos vagões da Companhia dos Caminhos de Ferro da Beira Alta, que iam até Irún carregados de volfrâmio, e voltavam a Vilar Formoso carregados de fugitivos. A operação foi mantida rigorosamente secreta porque as autoridades espanholas não consentiriam. Segundo um protocolo firmado pelas autoridades ferroviárias dos dois países, os vagões deviam circular selados, quer à ida quer à vinda. Um dos que assim salvaram a vida foi o Barão de Rothschild. O embaixador Teixeira de Sampaio confirmou-me, mais tarde, esses factos.
O salvamento de 30.000 refugiados deu-se ao mesmo tempo que o cônsul de Portugal em Bordéus, em cumplicidade com dois funcionários da PIDE, falsificava algumas centenas de vistos, que vendia por bom preço a emigrantes com dinheiro. Um dos que utilizaram esta via supôs que todos os outros vieram do mesmo modo – e assim nasceu a versão, hoje oficialmente consagrada, de que a operação de salvamento se deve ao cônsul de Bordéus, Aristides de Sousa Mendes. Este, homem muito afecto ao Estado Novo, nem sequer foi demitido, mas sim colocado na situação de aguardar aposentação. Os seus cúmplices da PIDE foram julgados, condenados e demitidos.