A 15 Setembro de 2014, no blogue «A Biblioteca do Jacinto», Maria Clara Assunção (na foto supra), decididamente contrária ao Acordo Ortográfico, escreveu um post com um diálogo imaginário onde pretende espetar uns pregos no Acordo Ortográfico, como se a actual ortografia portuguesa fosse uma coisa sacra, divinamente concebida e absolutamente lógica e explícita (que o Acordo Ortográfico, supostamente, quer desmantelar).
Diálogo imaginário
- Escreveste "concepção" e o acordo ortográfico diz que é "conceção".
- Mas o acordo ortográfico também diz que se escreve como se pronuncia e eu pronuncio "concepção".
- Pronuncias mal. Com o acordo ortográfico não tem "p".
- Mas antes tinha e eu sempre pronunciei.
- Por isso é que fizeram o acordo ortográfico. Para as pessoas saberem como se pronuncia.
- Mas assim eu pronuncio "conc'ção" como em "concessão".
- Pronuncias mal. Com o acordo ortográfico pronuncia-se "concéção".
- Mas eu aprendi a ler todas as vogais fechadas excepto...
- Exceto.
- ?...
- Agora diz-se "exceto".
- ... "exceto" quando são a silaba tónica ou são seguidas pela consoantes "pt", "ct" ou "pç".
- Esquece tudo o que aprendeste. Agora quem manda é o acordo ortográfico. Senta-te direito e come a sopa de letras.
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Anaísa Gordino (foi Investigadora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa e é, presentemente, Formadora e Consultora de Ciberdúvidas da Língua Portuguesa), no CIBERDÚVIDAS da Língua Portuguesa, aponta alguns dos podres da ortografia portuguesa:
Sobre o alegado papel das consoantes mudas na abertura das vogais que as precedem.
Em primeiro lugar, quanto à questão da dupla grafia, é preciso referir que existem duas situações:
a) Dupla grafia em espaços geográficos diferentes, dado as diferentes variantes do português apresentarem, para uma mesma palavra, pronúncias distintas; neste caso, distingue-se a variante luso-africana da variante brasileira, apresentando cada uma destas variantes a sua grafia própria para a palavra. É exemplo deste tipo de situação a dupla grafia da palavra facto/fato, que é grafada como facto em Portugal (ou seja, o "c" tem de ser mantido, pois é pronunciado) e fato no Brasil (o "c" não se pronuncia na variante brasileira, logo, foi eliminado);
b) Dupla grafia no mesmo espaço geográfico, dado os falantes apresentarem oscilações de pronúncia dentro de uma mesma variante, neste caso, a portuguesa; é neste tipo de situação que se inscreve espectador/espetador, um caso de dupla grafia dentro da nossa variante, o que, na prática, significa que, em Portugal, os falantes poderão escrever a palavra com ou sem "c", consoante o pronunciem ou não.
Em segundo lugar, quanto à questão da necessidade da manutenção das consoantes mudas ("c" ou "p") para abrir a vogal anterior, muitos de nós aprenderam, «corretamente ou não», que estas consoantes mudas serviam para abrir as vogais anteriores. Ora, diria que aprendemos «incorretamente» e que não existe uma regra ou uma correlação direta entre a presença de uma consoante muda e a abertura da vogal anterior (e, consequentemente, entre a queda dessa consoante muda e uma qualquer alteração na pronúncia da vogal), o que fica claro se olharmos para os dados.
Assim, esta questão tem também de ter em conta duas vertentes.
1. Da (alegada) relação causa-efeito entre a presença das consoantes mudas e a manutenção da abertura da vogal
Não há uma regra ou correlação direta entre a presença das consoantes mudas e a abertura da vogal anterior, seja em sílaba tónica ou em sílaba átona, o que fica patente se pensarmos nos dados do português e nas palavras que até agora mantinham estas consoantes mudas:
i) Por um lado, há palavras com consoante muda antes de uma vogal em sílaba átona em que a vogal é fechada, apesar da presença dessa consoante, a qual, a acreditarmos numa pretensa regra, deveria abrir a vogal (vejam-se casos como actual, actualidade, actividade), ao mesmo tempo que, noutras palavras, a vogal se mantém aberta (activa, afectivo, espectador); se existisse uma regra, tendo as consoantes mudas essa função específica de abertura das vogais, por que razão ela se aplicaria nuns casos e não noutros?
ii) Por outro lado, quando temos consoantes mudas antes de vogais que se encontram em sílaba tónica em palavras graves, o facto de haver palavras com sílaba tónica na mesma posição (ou seja, na penúltima sílaba), umas com consoante, outras sem qualquer consoante muda, em ambos os casos com uma vogal aberta, demonstra bem que não é a consoante muda que nos indica qual o timbre da vogal (tal deriva de regras fonológicas e de questões lexicais, não da presença de uma consoante muda) – veja-se completo (que nunca teve consoante muda) versus tecto ou dialecto, ou contrato (de trabalho), que já teve consoante muda "c" e a perdeu, mantendo, naturalmente, a abertura da vogal tónica, da mesma forma como deverá acontecer com exacto;
iii) por fim, no caso de palavras esdrúxulas, com a consoante muda a seguir à vogal tónica, é óbvio que a presença da consoante é redundante, pois o acento gráfico destas palavras cumpre a dupla função de indicar a sílaba tónica e de dar informação sobre o timbre da vogal (veja-se didáctica, eléctrico, óptimo); note-se ainda, como curiosidade, que o Acordo de 1945 já tinha eliminado as consoantes mudas de palavras como práctico/a, mas manteve-as em palavras como didáctico/a.
Tendo em conta os argumentos anteriores e ao analisarmos alguns exemplos de palavras podemos, de facto, perceber que não existe uma regra ou um processo linguístico subjacente à presença de consoantes mudas e à abertura das vogais que as precedem. Se assim fosse, como explicar as assimetrias em palavras que, inclusivamente, apresentam uma relação morfológica, mas que têm diferentes comportamentos? Como explicar, por exemplo, que em exacto/exactidão/exactamente, a vogal seja ora aberta, ora fechada, do ponto de vista da presença da consoante muda?
Claramente, não é a presença das consoantes mudas que determina a abertura ou não das vogais, o que nos leva a perceber que o que aqui está em causa são processos fonéticos, fonológicos e morfofonológicos, em alguns casos, mas também questões lexicais, noutros casos. São essas as verdadeiras razões para a manutenção da abertura das vogais, sobretudo das vogais átonas (já que, nas vogais tónicas, a abertura da vogal é algo natural, digamos assim) e, em particular, para a abertura das vogais nestes casos de (queda das) consoantes mudas.
2. Das verdadeiras razões para a não aplicação da regra do vocalismo átono/contextos que propiciam a não aplicação do vocalismo átono (permitindo a manutenção da abertura da vogal)
Há uma série de exceções à aplicação da regra do vocalismo átono, algumas das quais são regulares, outras das quais não podem ser explicadas através de regras, sendo marcadas no léxico, sem que haja uma regra possível para as descrever ou explicar, ou um contexto específico que possamos identificar sincronicamente (isto é, actualmente, já que alguns podem ser explicados diacronicamente, olhando para a história da língua).
(i) Casos regulares (como a própria designação indica, trata-se de contextos em que a manutenção da abertura da vogal átona apresenta uma regularidade):
a) Vogais em sílabas átonas terminadas pela consoante "l"
Exs.: salgado, relvado;
b) Vogais em sílabas átonas que têm um ditongo decrescente
Exs.: gaiteiro, pautado, endeusar, boiar;
c) Vogais átonas em contexto inicial de palavra
Exs.: operário, obreiro, olhar;
d) Vogais em sílaba átona em palavras formadas por derivação com os chamados sufixos z-avaliativos (-zinho, -zito, -zão) e com o sufixo -mente (aquilo que se designa como a presença de acento secundário)
Exs.: pobrezinho, chazinho, sozinho, belamente, rapidamente (aqui se inclui uma palavra como exatamente).
(ii) Exceções marcadas no léxico:
Aqui se inscreve o caso de espectador/espetador, no qual não podemos explicar a manutenção da abertura da vogal nem através do contexto, nem pela aplicação de uma regra, seja ela puramente fonológica ou morfofonológica. Aquilo que se defende é que há uma marcação no item lexical que determina que a vogal é aberta e que não sofre aplicação da regra do vocalismo átono. Colocando a questão de uma forma simples, as palavras vêm do léxico com um conjunto de informações (como se de um BI ou cartão do cidadão se tratasse) e esta é uma das informações que qualquer palavra traz; a abertura da vogal átona é, por isso, independente da presença ou não de uma consoante muda. Mateus et alii, em Fonética e Fonologia do Português (uma obra alheia às questões do Acordo Ortográfico) reforçam a ideia de que tal se trata de uma mera convenção ortográfica, derivada da etimologia:
"A não redução das vogais átonas nestes casos é por vezes indicada ortograficamente com uma consoante etimológica. Esse aspecto é exclusivamente ortográfico, visto que há palavras com as mesmas características que não têm indicação ortográfica, como se pode ver nos exemplos incluídos em (12) [que aqui retomo]; nas palavras de (12b) as vogais átonas têm origem histórica em duas vogais seguidas que se fundiram, ou seja, que sofreram uma crase."
12) - (a) dilação, invasor, protecção, absorver, baptismo, [espectador]
(b) mestrado, pregar [um sermão], corar, aquecer
Na palavra espectador/espetador (segundo a nossa pronúncia da consoante), a verdadeira razão, do ponto de vista linguístico, para a abertura da vogal é, então, a marcação no léxico desse aspecto, ou seja, a informação que a palavra traz do léxico de que aquela vogal é aberta e não será sujeita à aplicação da regra do vocalismo átono, mantendo-se por isso aberta num contexto em que, de outra forma, tal não seria esperado.
Assim, quer mantenhamos ou eliminemos o "c" de uma palavra como espectador, a pronúncia da vogal manter-se-á inalterada, à semelhança de todas as outras palavras que sofrerão a queda das consoantes mudas.
10 comentários:
Podres? Não estará a exagerar um bocado no grau de leviandade com que se pronuncia sobre uma assunto em relação ao qual, como você próprio confessa, é apenas um leigo?
Pedro Nunes
Caro Pedro Nunes,
Não me parece. E até que ponto é que sou um leigo? Não me comecei a interessar pelo assunto ontem. E, de qualquer forma aprendo depressa. E, pelo que tenho lido, aprendi que a ortografia portuguesa tem muitos buracos, muitos deles completamente ininteligíveis.
Sou informático de profissão e tenho o hábito de procurar detetar regras claras nos variados tipos de problemas que surgem em todos os campos do conhecimento.
E recordo aqui três opiniões de não leigos sobre as ortografias:
Miguel Siguan no seu livro «A EUROPA DAS LÍNGUAS»:
1 - Em francês, o fonema [є], «[e aberto») pode representar-se de catorze maneiras diferentes sem que tão-pouco haja alguma regra que justifique por que é que num casos se utiliza uma em vez de outra.
2 - Os exemplos em inglês não são menos frequentes. Assim, o fonema [i] pode ser representado de dez maneiras diferentes: «ea» (sea), «ee» (bee), «ie» (field), «ei» (ceiling), «eo» (people)...
3 - O sistema ortográfico inglês é provavelmente o mais incoerente de todos os sistemas ortográficos que utilizam o alfabeto latino, isso porque manteve intacta a grafia correspondente ao inglês falado no séc. XVI ou mesmo, segundo certos autores, ao inglês medieval, apesar das mudanças fonéticas ocorridas desde então.
Paul Valéry, Varieté III, 1936: «Esta ortografia criminosa (francesa), uma das fabricações mais grotescas do mundo».
Vendryes (1921), um conhecido linguista, dizia: «A ortografia do alemão é regular, a do espanhol bastante boa, mas a do francês e do inglês são abomináveis»
Etc., Etc., Etc...
Não o vejo o autor deste blogue a utilizar o AO. Pois.
Caro RH,
Vou deixando que AO vá entrando na minha cabeça ao meu ritmo. Porque, ao fim de certos anos, os hábitos são difíceis de mudar.
Deixo a coisa fluir naturalmente... Sem preocupações...
Sobre o acordo ortográfico, só uma coisa tenho a dizer: foram de certo alguns Lellos e outros tantos Coitos que se reuniram e a seu belo prazer decidiram.
Estamos repletos de gentes e agentes deste calibre que primeiro os seus interesses e só depois os de todo um povo.
Creio que os videos abaixo complementam o seu artigo:
A fraude intelectual da reforma ortográfica da Língua Portuguesa
https://www.youtube.com/watch?v=-_wIluG3yRs
Sidney Silveira
Published on Apr 25, 2014
ENTREVISTA-DENÚNCIA com o Lexicógrafo-Chefe da Academia Brasileira de Letras (ABL) na época da reforma ortográfica da língua portuguesa: Sergio De Carvalho Pachá.
Pachá conta como nasceu a idéia do acordo, os absurdos de suas premissas e o caráter indefensável das mudanças por ele propostas.
ERRATA: Pequenos lapsos muitas vezes acontecem no decorrer de um bate-papo. No trecho em que o Prof. Pachá se refere à função diacrítica das consoantes mudas em Portugal, o correto seria dizer "para assinalar a abertura DA VOGAL QUE AS PRECEDE" e não "DA VOGAL QUE SE LHES SEGUE". Feita aqui a correção, por indicação do próprio lexicógrafo. Nada que empane o brilho e a importância desta entrevista.
Pachá tratará deste e de outros assuntos no curso "A Língua Absolvida", do Instituto Angelicum.
Inscrições em:
http://institutoangelicum.edools.com/...
Obrigada pela divulgação do meu post.
Sempre às ordens, cara MCA.
Quanto ao resto, a substância está no pensamento. A oralidade é um parente pobre dele (porque é incapaz de transmitir cabalmente o que vai na cabeça de uma pessoa).
E a escrita é um parente pobre da oralidade (porque não consegue transmitir cabalmente a fala - falta-lhe as inflexões, as hesitações, o aumento e a descida do timbre, etc.).
Donde, estar a sacralizar a escrita é uma aberração. Não é o facto da minha primeira língua ser o português que vai condicionar a minha forma de ser ou de pensar. Isso é uma palermice dos linguistas.
Post muito esclarecedor e lúcido.
Deixo-lhe uma outra súmula do assunto, que confirma o seu trabalho:
http://emportuguezgrande.blogspot.pt/p/a-falacia-das-consoantes-mudas.html
Para saber mais sobre a origem das consoantes mudas "diacríticas":
http://emportuguezgrande.blogspot.pt/p/a-origem-das-consoantes-mudas.html
Abraço.
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