segunda-feira, março 01, 2010

Catástrofe na Madeira - Eu tive um sonho



Enviado por um amigo.

Texto do engenheiro silvicultor Cecílio Gomes da Silva, de 11 de Dezembro de 1984, e publicado no dia 13 de Janeiro de 1985 no jornal "Diário de Notícias" do Funchal:


Eu tive um sonho

Traumatizado pelo estado de desertificação das serras do interior da Ilha da Madeira, muito especialmente da região a Norte do Funchal e que constitui as bacias hidrográficas das três ribeiras que confluem para o Funchal, dando-lhe aquela fisiografia de perfeito anfiteatro, aliado a recordações da infância passada junto à margem de uma das mais torrenciais dessas ribeiras – a de Santa Luzia – o mundo dos meus sonhos é frequentemente tomado por pesadelos sempre ligados às enxurradas invernais e infernais dessa ribeira. Tive um sonho.

Adormecendo ao som do vento e da chuva fustigando o arvoredo do exemplar Bairro dos Olivais Sul onde resido, subia a escadaria do Pico das Pedras, sobranceiro ao Funchal. Nuvens negras apareceram a Sudoeste da cidade, fazendo desaparecer o largo e profundo horizonte, ligando o mar ao céu. Acompanhavam-me dois dos meus irmãos – memórias do tempo da juventude – em que nós, depois do almoço, íamos a pé, subindo a Ribeira de Santa Luzia e trepando até à Alegria por alturas da Fundoa, até ao Pico das Pedras, Esteias e Pico Escalvado. Mas no sonho, a meio da escadaria de lascas de pedra, o vento fez-nos parar, obrigando-nos a agarrarmo-nos a uns pinheiros que ladeavam a pequena levada que corria ao lado da escadaria. Lembro-me que corria água em supetões, devido ao grande declive, como nesses velhos tempos. De repente, tudo escureceu. Cordas de água desabaram sobre toda a paisagem que desaparecia rapidamente à nossa volta. O tempo passava e um ruído ensurdecedor, semelhante a uma trovoada, enchia todo o espaço. Quanto durou, é difícil calcular em sonhos.

Repentinamente, como começou, tudo parou; as nuvens dissiparam-se, o vento amainou e a luz voltou. Só o ruído continuava cada vez mais cavo e assustador. Olhei para o Sul e qualquer coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. De onde me encontrava via-os transformarem-se numa só torrente de lama, pedras e detritos de toda a ordem. A Ribeira de Santa Luzia, bloqueada por alturas da Ponte Nova – um elevado monturo de pedras, plantas, arames e toda a ordem de entulho fez de tampão ao reduzido canal formado pelas muralhas da Rua 31 de Janeiro e da Rua 5 de Outubro – galgou para um e outro lado em ondas alterosas vermelho acastanhadas, arrasando todos os quarteirões entre a Rua dos Ferreiros na margem direita e a Rua das Hortas na margem esquerda. As águas efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas, tudo cobriram até à Sé – único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. A Ribeira de João Gomes quase não saiu do seu leito até alturas do Campo da Barca; aí, porém, chocando com as águas vindas da Ribeira de Santa Luzia, soltou pela margem esquerda formando um vasto leito que ia desaguar no Campo Almirante Reis junto ao Forte de S. Tiago. A Ribeira de S. João, interrompida por alturas da Cabouqueira fez da Rua da Carreira o seu novo leito que, transbordando, tudo arrasou até à Avenida Arriaga. Um tumultuoso lençol espumante de lama ia dos pés do Infante D. Henrique à muralha do Forte de S. Tiago. O mar em fúria disputava a terra com as ribeiras. Recordo-me de ver três ilhas no meio daquele turbilhão imenso: o Palácio de S. Lourenço, a torre da Sé e a fortaleza de S. Tiago. Tudo o mais tinha desaparecido – só água lamacenta em turbilhões devastadores.

Acordei encharcado. Não era água, mas suor. Não consegui voltar a adormecer. Acordado o resto da noite por tremenda insónia, resolvi arborizar toda a serra que forma as bacias dessas ribeiras. Continuei a sonhar, desta vez acordado. Quase materializei a imaginação; via-me por aquelas chapas nuas e erosionadas, com batalhões de homens, mulheres e máquinas, semeando urze e louro, plantando castanheiros, nogueiras, pau-branco e vinháticos; corrigindo as barrocas com pequenas barragens de correcção torrencial, canalizando talvegues, desobstruindo canais. E vi a serra verdejante; a água cristalina deslizar lentamente pelos relvados, saltitando pelos córregos enchendo levadas. Voltei a ouvir os cantares dolentes dos regantes pelos socalcos ubérrimos das vertentes. Foram dois sonhos. Nenhum deles era real; felizmente para o primeiro; infelizmente para o segundo.

Oxalá que nunca se diga que sou profeta. Mas as condições para a concretização do pesadelo existem em grau mais do que suficiente.

Os grandes aluviões são cíclicos na Madeira. Basta lembrar o da Ribeira da Madalena e mais recentemente o da Ribeira de Machico. Aqui, porém, já não é uma ribeira, mas três, qualquer delas com bacias hidrográficas mais amplas e totalmente desarborizadas. Os canais de dejecção praticamente não existem nestas ribeiras e os cones de dejecção estão a níveis mais elevados do que a baixa da cidade. As margens estão obstruídas por vegetação e nalguns troços estão cobertas por arames e trepadeiras. Agradável à vista mas preocupante se as águas as atingirem. Estão criadas todas as condições, a montante e a jusante para uma tragédia de dimensões imprevisíveis (só em sonhos).

Não sei como me classificaria Freud se ouvisse este sonho. Apenas posso afirmar sem necessidade de demonstrações matemáticas que 1 mais 1 são 2, com ou sem computador. O que me deprime, porém, é pensar que o segundo sonho é menos provável de acontecer do que o primeiro.

Dei o alarme – pensem nele.

Engenheiro Cecílio Gomes da Silva, Lisboa, 11 de Dezembro de 1984


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10 comentários:

Zorze disse...

Diogo,

Vê o seguinte vídeo, parte de um documentário produzido pela RTP2 em 2008.
Seria profecia?

http://www.youtube.com/watch?v=aTf0h3nobAs&feature=player_embedded

Filipe disse...

Diz-se que uma imagem vale mais que mil palavras, e é verdade.

Quem duvida, que veja a foto do Alberto João.

Anónimo disse...

O Bobo levou treze anos
a fazer o curso, em Coimbra,
de puro prazer, é feliz
e, diz ele, o que lá vai
lá vai e, já amigo do Socas,
do mais lá quer ele saber.

Castanheira disse...

A enxurrada foi um pesadelo momentâneo mas o governo da ilha é um pesadelo eterno.

Diogo disse...

Zorze – Já tinha visto esse vídeo. Absolutamente profético tal como a carta que transcrevo no post.


Filipe – O palhaço deixou que se construísse e se atafulhasse as zonas por onde uma valente chuvada teria obrigatoriamente de passar. Por esse facto é corresponsável nas mortes que aconteceram.


Anónimo – É um bobo corrupto, ditador e agora pior que isso.


Castanheira – Dá-me vómitos ver a cara do espantalho.

Eurico Moura disse...

O palhaço vai reformar-se. Não há mal que sempre dura...

Adolfo disse...

Alberto João, o único político com tomates e que chama os bois pelos nomes.

Portugal precisava dum homem como estes no lugar da pandeleiragem e dos «sucialistas» que nos «governam»!

Diogo disse...

Eurico Moura – Desejo ao palhaço uma reforma curta e dolorosa.


Adolfo – Os «sucialistas» que nos «governam», do CDS a muita gente da «esquerda», são, de facto, uma pandeleiragem (o termo é seu). Quanto ao Alberto João, é pena não estar neste momento com vários metros de lama e entulho em cima, em elevado estado de putrefacção.

contradicoes disse...

A catástrofe da Madeira
deve-se à irresponsabilidade
da construção de qualquer maneira
sem respeitar a urbanidade

alf disse...

A catástrofe da Madeira acontecia com ou sem as construções. Para a evitar é preciso medidas muito complicadas.

Mas nós já estamos bem, já arranjamos um culpado, já não precisamos de pensar mais no assunto.

Por isso, ela irá repetir-se.

Mas não faz mal, da próxima vez faremos o mesmo - arranjaremos um culpado, apontaremos o dedo.