Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
É a Saúde, estúpido!
Publicado na Visão em 14 de Fevereiro de 2008
Ficou famosa a frase "Is the economy, stupid", pronunciada em 1992 por Bill Clinton para explicar aos republicanos as razões da sua vitória eleitoral. Com ela queria dizer que as preocupações principais dos norte-americanos tinham a ver com o estado da economia e com o modo como este se traduzia no seu bem-estar. E por isso uma das suas promessas eleitorais prioritárias era a criação de um sistema de saúde universal, que se aproximasse dos sistemas de saúde da Europa e do Canadá e que acabasse com o escândalo de no país mais rico do mundo cerca de 30 milhões de cidadãos não terem qualquer protecção na saúde. Como é sabido, as grandes empresas da indústria da saúde (das empresas hospitalares, às seguradoras, à indústria farmacêutica e de meios de diagnóstico) moveram uma das guerras mediáticas mais agressivas de que há memória contra a "medicina socialista" de Clinton e a proposta caiu. Hoje são 49 milhões os norte-americanos sem qualquer protecção. Não havendo sistema público senão para os idosos, os trabalhadores dependem da disponibilidade dos patrões para agregarem o seguro ao contrato de trabalho e tal disponibilidade é cada vez mais escassa. Não é, pois, por acaso, que os candidatos do partido democrático, Barak Obama e Hilary Clinton, voltem a pôr no centro dos seus programas eleitorais o financiamento público da cobertura universal dos meios de saúde.
Ficou famosa a frase "Is the economy, stupid", pronunciada em 1992 por Bill Clinton para explicar aos republicanos as razões da sua vitória eleitoral. Com ela queria dizer que as preocupações principais dos norte-americanos tinham a ver com o estado da economia e com o modo como este se traduzia no seu bem-estar. E por isso uma das suas promessas eleitorais prioritárias era a criação de um sistema de saúde universal, que se aproximasse dos sistemas de saúde da Europa e do Canadá e que acabasse com o escândalo de no país mais rico do mundo cerca de 30 milhões de cidadãos não terem qualquer protecção na saúde. Como é sabido, as grandes empresas da indústria da saúde (das empresas hospitalares, às seguradoras, à indústria farmacêutica e de meios de diagnóstico) moveram uma das guerras mediáticas mais agressivas de que há memória contra a "medicina socialista" de Clinton e a proposta caiu. Hoje são 49 milhões os norte-americanos sem qualquer protecção. Não havendo sistema público senão para os idosos, os trabalhadores dependem da disponibilidade dos patrões para agregarem o seguro ao contrato de trabalho e tal disponibilidade é cada vez mais escassa. Não é, pois, por acaso, que os candidatos do partido democrático, Barak Obama e Hilary Clinton, voltem a pôr no centro dos seus programas eleitorais o financiamento público da cobertura universal dos meios de saúde.
«Tem tudo a ver com prioridades. Podemos subornar um xeque sunita para que seja nosso aliado durante uma semana inteira pelo mesmo preço de vacinar 100.000 miúdos pobres contra a gripe.»
Mais do que irónico é trágico que em Portugal se esteja a tentar destruir aquilo que o povo norte-americano tanto aspira. Mais trágico ainda é que, neste domínio, haja desde 2002, com o governo de Durão Barroso, uma continuidade mal disfarçada entre as políticas do PSD e do PS. Descartada a retórica, os objectivos do ministro da saúde de Durão Barroso, Luís Filipe Pereira, e do ex ministro Correia de Campos são os mesmos: privatizar o bem público da saúde, transformando-o num lucrativo sector de investimentos de capital (como dizia recentemente, um quadro de uma grande empresa de saúde: "mais lucrativo que o negócio da saúde, só o negócio das armas"); transformar o Serviço Nacional de Saúde num sistema residual, tecnológica e humanamente descapitalizado, proporcionando serviços de baixa qualidade às populações pobres da sociedade; definir a eficiência em termos de custos e não em termos de resultados clínicos (levado ao paroxismo pela decisão do ex-ministro socialista de limitar o aumento da produção cirúrgica nos hospitais para não aumentar a despesa); eliminar qualquer participação dos cidadãos na formulação das políticas de saúde para poder impor rápida e drasticamente três palavras de ordem: privatizar, fechar, concentrar; promover parcerias público/privado em que todos os riscos são assumidos pelo Estado e as derrapagens financeiras não contam como desperdício ou ineficiência (já que uma e outra são um exclusivo do sector público).
A Correia de Campos, apenas devemos reconhecer a coerência. Desde que passou pelo Banco Mundial assumiu-se como coveiro do Estado Social, seja na saúde ou na segurança social. Na Comissão do Livro Branco da Reforma da Segurança Social, a que pertenci, verifiquei com espanto que os seus aliados na comissão não eram os socialistas, eram precisamente Luís Filipe Pereira (que pouco depois quis privatizar a saúde) e Bagão Félix (que, desde sempre quis privatizar a segurança social). Alguém se recorda que a criação do SNS em 1979 esteve na origem do abandono por parte do CDS da coligação que sustentava o governo do partido socialista? Portanto, de duas uma, ou o PS abandonou os seus princípios ou Correia de Campos está no partido errado? A sua recente demissão parece apontar para a segunda opção mas só a política concreta da nova ministra confirmará ou não se afinal não estamos perante a primeira opção.
Para que esta primeira opção não se confirme é necessário que a actuação do governo se paute, por obras e não por palavras, pelos seguintes princípios.
O SNS é um dos principais pilares da democracia portuguesa, e a ela se devem os enormes ganhos de desenvolvimento humano nos últimos trinta anos; qualquer retrocesso neste domínio é um ataque à democracia. O SNS é um factor decisivo da gestão territorial do país (o país não termina a 50 km da costa). O SNS é um serviço financiado por todos, ao serviço e gerido em função dos ganhos de saúde e de modo a eliminar desperdícios. Nos critérios de eficiência, inclui-se a eficiência na vida dos doentes cujo atendimento pontual é fundamental para que não se perca uma manhã num acto médico que dura 20 minutos.
É urgente modernizar o SNS no sentido de o aproximar dos cidadãos tanto na prestação dos cuidados como na gestão dos serviços (participação dos cidadãos e das associações de doentes na concretização do direito à saúde deve ser incentivada). Promover a todo o custo o regime de exclusividade e terminar com a escandalosa promiscuidade entre a medicina pública e privada para que, por exemplo, não se continuem a acumular fortunas fabulosas com base nas listas de espera ou na falta de equipamentos. Promover a estabilidade e as carreiras, apostar na inovação técnica e científica e democratizar o acesso às faculdades de Medicina. E sobretudo tornar claro o carácter complementar do sector privado antes que os grupos económicos da saúde (Grupo Mello, BES, BPN/GPS, CGD/HPP, etc.) tenham suficiente poder para serem eles próprios a definir as políticas públicas de saúde e, portanto, para bloquear quaisquer medidas que afectem as suas taxas de juro. Quando tal acontecer serão eles a dizer: "É a saúde, estúpido!", a saúde dos seus negócios, não a dos cidadãos estúpidos.
Comentário:
... antes que os grupos económicos da saúde (Grupo Mello, BES, BPN/GPS, CGD/HPP, etc.) tenham suficiente poder para serem eles próprios a definir as políticas públicas de saúde e, portanto...
... para bloquear quaisquer medidas que afectem as suas taxas de juro.
A Correia de Campos, apenas devemos reconhecer a coerência. Desde que passou pelo Banco Mundial assumiu-se como coveiro do Estado Social, seja na saúde ou na segurança social. Na Comissão do Livro Branco da Reforma da Segurança Social, a que pertenci, verifiquei com espanto que os seus aliados na comissão não eram os socialistas, eram precisamente Luís Filipe Pereira (que pouco depois quis privatizar a saúde) e Bagão Félix (que, desde sempre quis privatizar a segurança social). Alguém se recorda que a criação do SNS em 1979 esteve na origem do abandono por parte do CDS da coligação que sustentava o governo do partido socialista? Portanto, de duas uma, ou o PS abandonou os seus princípios ou Correia de Campos está no partido errado? A sua recente demissão parece apontar para a segunda opção mas só a política concreta da nova ministra confirmará ou não se afinal não estamos perante a primeira opção.
Para que esta primeira opção não se confirme é necessário que a actuação do governo se paute, por obras e não por palavras, pelos seguintes princípios.
O SNS é um dos principais pilares da democracia portuguesa, e a ela se devem os enormes ganhos de desenvolvimento humano nos últimos trinta anos; qualquer retrocesso neste domínio é um ataque à democracia. O SNS é um factor decisivo da gestão territorial do país (o país não termina a 50 km da costa). O SNS é um serviço financiado por todos, ao serviço e gerido em função dos ganhos de saúde e de modo a eliminar desperdícios. Nos critérios de eficiência, inclui-se a eficiência na vida dos doentes cujo atendimento pontual é fundamental para que não se perca uma manhã num acto médico que dura 20 minutos.
É urgente modernizar o SNS no sentido de o aproximar dos cidadãos tanto na prestação dos cuidados como na gestão dos serviços (participação dos cidadãos e das associações de doentes na concretização do direito à saúde deve ser incentivada). Promover a todo o custo o regime de exclusividade e terminar com a escandalosa promiscuidade entre a medicina pública e privada para que, por exemplo, não se continuem a acumular fortunas fabulosas com base nas listas de espera ou na falta de equipamentos. Promover a estabilidade e as carreiras, apostar na inovação técnica e científica e democratizar o acesso às faculdades de Medicina. E sobretudo tornar claro o carácter complementar do sector privado antes que os grupos económicos da saúde (Grupo Mello, BES, BPN/GPS, CGD/HPP, etc.) tenham suficiente poder para serem eles próprios a definir as políticas públicas de saúde e, portanto, para bloquear quaisquer medidas que afectem as suas taxas de juro. Quando tal acontecer serão eles a dizer: "É a saúde, estúpido!", a saúde dos seus negócios, não a dos cidadãos estúpidos.
Comentário:
... antes que os grupos económicos da saúde (Grupo Mello, BES, BPN/GPS, CGD/HPP, etc.) tenham suficiente poder para serem eles próprios a definir as políticas públicas de saúde e, portanto...
... para bloquear quaisquer medidas que afectem as suas taxas de juro.
8 comentários:
hão-de reparar:
tudo o que se passa em Portugal tem origens, ainda que pareçam longinquas, com os centros de decisão neocon do Império de onde emanam as directivas que têm de ser cumpridas por quem aderiu ao pacto.
No caso da saúde trata-se simplesmente de destruir e/ou desestabilizar os existente para abrir caminho ao mercado dos privados na Saúde (leia-se as multinacionais 90% norte-americanas da Big-Pharma).
Ajuizado andou o presidente da Câmara de Vila Real de Santo António; o homem até nem é comunista, (nem Cuba tampouco) mas fez um acordo com Cuba para que os seus municipes se ali se desloquem para serem tratados. Já foram cerca de 100 até à data! os que viajaram para aquela "terrivel ditadura"!
embrulha!
Mais vale rico e com saúde do que pobre e doentinho.
Portugal esteve sempre desarmado perante os estratagemas da indústria farmacêutica. As diversas políticas de ministros consecutivos e a desempenho do Infarmed nada fizeram para que este cenário se alterasse.
A Indústria Farmacêutica tem sido o grande lobby a influenciar o sector da saúde, efectuando lucros prodigiosos pagos com os nossos impostos.
Meu caro Diogo. Lembro-lhe só, que uma larga percentagem de médicos e enfermeiros que trabalham no sector público da saúde também prestam serviço no sector privado o que quer dizer dispõem de tempo para conseguirem conciliar essa prestação de serviço. Será que são só as intenções do governo, dos banqueiros das seguradoras etc, etc. que estão interessados no negócio ou não haverá muita mais gente?
Isto é um país de trampa;
o SNS era uma trampa, uma ilusão mais do que outra coisa, usado por muitos médicos para captar doentes para as suas actividades privadas; isso está a levar uma vassourada, não tenho duvidas que irá ficar melhor em muitas áreas.
aqui tudo se move ao sabor de interesses de minorias. Os nossos economistas seguem teorias económicas fabricadas para servirem os interesses dos grandes grupos economicos americanos. Só conheço dois paises que sigam essas teorias: Portugal e a Argentina até ao colapso, agora já aprendeu.
A saude tem estado ao serviço do lobby dos médicos, agora mudou o lobby que manda. Mas pode ser que ainda beneficiemos alguma coisa destas lutas de galos... parece-me que os hospitais publicos já estão a começar a melhorar em alguns serviços... e vêm aí as eleições, as coisas não podem estragar-se muito...
Como sempre, um post muito bem construido. Afinal, nem tudo é trampa neste país! Haja esperança!
Caros Raul e Alf,
Boaventura de Sousa Santos também afirma que é urgentíssimo tornar eficaz o SNS:
1 - É urgente modernizar o SNS no sentido de o aproximar dos cidadãos tanto na prestação dos cuidados como na gestão dos serviços (participação dos cidadãos e das associações de doentes na concretização do direito à saúde deve ser incentivada).
2 - Promover a todo o custo o regime de exclusividade e terminar com a escandalosa promiscuidade entre a medicina pública e privada para que, por exemplo, não se continuem a acumular fortunas fabulosas com base nas listas de espera ou na falta de equipamentos.
3 - Promover a estabilidade e as carreiras, apostar na inovação técnica e científica e democratizar o acesso às faculdades de Medicina.
Mas Boaventura afirma também que a saúde não é uma coutada de privados e de ricos como na América. O facto de estarmos num oitenta não significa que passemos para um oito. Há um meio caminho onde se situa um SNS bastante mais eficiente e onde toda a gente tem acesso à saúde.
carissimo Alf
"usado por muitos médicos para captar doentes para as suas actividades privadas"
saiba que esse tipo de falta de ética é eficazmente combatido; sei pessoalmente de um caso em que um médico foi expulso da função pública por ter feito isso. Chegado cá fora, nos privados, é que começou a enriquecer: os grandes laboratórios pagam-lhe em viagens turisiticas e outras mordomias pela quantidade as marcas de medicamentos prescritos; note bem, não é pela necessidade dos doentes, é por atingir mínimos de vendas em produtos das farmacêuticas.
Na denúncia disto temos o caso Pequito vs Bayer que nunca foi julgado conclusivamente.Pelo contrário, depois desse caso a prática generalizou-se,,, impunemente.
Quantos aos EUA - a medicina atingiu tal forma de corrupção que já se faz publicidade a produtos com mercúrio dizendo que este é benéfico para o "desenvolvimento" das crianças.
O dinheiro manda. O dinheiro mexe. O dinheiro faz as coisas acontecerem.
E que se dizia que o séc. XXI iria ser a "Era da Consciência". Em cem anos ...
Muito bom o comentário de Castanheira: "Portugal esteve sempre desarmado perante os estratagemas da indústria farmacêutica".
Mais uma vez outro excelente artigo.
Zorze,
http://extrafisico.blogspot.com
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