quarta-feira, junho 25, 2008

A boçalidade internauta versus a propaganda dos «media de referência»

Expresso - 21/06/2008

Texto de João Pereira Coutinho

A melhor forma de enfrentar o «culto do amador» está em procurar o profissional em nós. Porque somos nós o verdadeiro «filtro»

"Conhecem o «teorema do macaco infinito»? A ideia pertence a T.H. Huxley, que no século XIX afirmava que o macaco seria capaz de escrever uma peça de Shakespeare. Bastava, para tal, que dispuséssemos de macacos infinitos aos quais pudéssemos confiar máquinas de escrever infinitas. Um dia eles acabariam por medrar qualquer coisa de sublime."

"Andrew Keen regressa ao teorema de Huxley em livro que deu polémica nos EUA e foi agora editado entre nós pela Guerra & Paz. Intitula-se «O Culto do Amadorismo». O título, como se costuma dizer, é todo um programa: entregue à multidão ignara - à geração YouTube, à geração Blogspot, à geração Wikipédia; no fundo, aos «macacos infinitos» -, a Internet está a arrasar com o mérito intelectual e artístico; a promover a ignorância e a boçalidade em larga escala; e a cultivar um narcisismo repulsivo em que milhões de alienados usam a rede para exporem os seus delírios."

"O problema, no fundo, está na ausência de filtro, capaz de separar a qualidade da mediocridade. Num jornal clássico, existe um editor; na televisão, existe um programador; nos meios de comunicação, existem profissionais que julgam e seleccionam. A Internet é uma selva epistemológica e moral que, acredita Keen, só será espaço frequentável quando os mecanismos de julgamento e selecção tradicionais forem exercidos por profissionais cibernéticos."

"Entendo o argumento de Keen. Mas é difícil concordar com o tom alarmista do autor. A Internet é um caos? Sem dúvida. Mas por cada vídeo idiota no YouTube, existem preciosidades musicais, históricas ou até filosóficas que seriam impensáveis há uma década. A melhor forma de enfrentar o «culto do amador» está em procurar, nas famílias ou nos amigos, nos livros ou nas escolas, o profissional em nós. Porque somos nós o verdadeiro «filtro» cibernético; os editores pessoais da informação que procuramos e recusamos; os programadores privados das imagens que nos inspiram ou repugnam."

"A Internet mata a cultura tradicional? Pelo contrário: a Internet exige-a como nunca."

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Numa edição anterior do Expresso, João Pereira Coutinho empunhava armas contra o que considerava:

"A guerra contra o cliché"

"Eu não sei se é possível escrever poesia depois de Auschwitz. Mas sei que transformar Auschwitz em poesia transporta um risco fatal: converter o horror em sentimentalismo e o sentimentalismo em cliché. Foi o que aconteceu com o 11 de Setembro de 2001. Ou, melhor, com o 11 de Setembro de 2006, que acompanhei na imprensa e nas televisões. Com um saco de enjoo ao lado. Foram artigos emocionais. Fotografias pretensamente épicas, acompanhadas por frases pretensamente profundas. As últimas palavras dos mortos para amigos ou familiares, expostas em público como se fossem propriedade colectiva. Sem falar dos repulsivos "documentários ficcionais" que transformam o drama em caricatura. Não sei se a roupa interior das vítimas teve direito a espiolhagem mediática, mas tudo é possível e, pior, tudo é provável. Esta orgia macabra de dor não é apenas a consagração «pop» de um acto imperdoável - uma verdadeira vitória para os fanáticos, subitamente promovidos a vilões de matiné. Transformar o 11 de Setembro em «videoclip» é também uma forma de lhe retirar dignidade trágica. A dignidade que só a memória e o silêncio são capazes de preservar".


Comentário:

João Pereira Coutinho, no primeiro artigo, tece loas à Internet e contesta o «pessimismo» de Andrew Keen, para quem a Internet «promove a ignorância e a boçalidade em larga escala». Coutinho considera que cada um de nós deve procurar em si mesmo, nos amigos, nos livros e nas escolas, o verdadeiro «filtro» cibernético, o editor que existe em cada um de nós, graças ao qual todos nós poderemos atravessar incólumes a selva epistemológica e moral de que fala Andrew Keen.

Mas como chama a atenção Michael Parenti, os «editores profissionais», os das televisões, os dos jornais, os dos livros, inclinam-se consistentemente em direcção a determinados interesses. Uma das tácticas preferidas deste «jornalismo» dá pelo nome de «Supressão pela Omissão»:

"Meios de comunicação que parecem à primeira vista sensacionalistas e intrusivos, são, na realidade, silenciosos e evasivos. Mais insidioso que o furo sensacionalista é a evasiva astuciosa. Histórias verdadeiramente sensacionais (que não sensacionalistas) são desvalorizadas e evitadas completamente. Às vezes, a supressão inclui não apenas detalhes vitais mas toda a história, mesmo aquelas mais importantes."

É será por isso que perante as controvérsias que na Internet têm envolvido os atentados do 11 de Setembro e o Holocausto Judeu, João Pereira Coutinho apela à nossa sensatez editorial, ao nosso filtro da «qualidade de informação», por forma a que a «boçalidade em larga escala» não se espraie irresponsavelmente, e que os delírios repulsivos de milhões de alienados não conspurquem «versões históricas» há muito adquiridas e cuja "dignidade só a memória e o silêncio serão capazes de preservar".

Conhecem o «teorema do macaco infinito»? Ou a proposição do João Pereira Coutinho?
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5 comentários:

xatoo disse...

o recorte da noticia sobre o museu judaico em Lisboa publicado ontem no Público está lá no meu último post

Zorze disse...

O rapaz está um pouco baralhado.
Antes a informação era muito mais filtrada, pois, os canais também eram em menor número.
Hoje, quem decide e controla (bilderberg, etc.), achou por bem massificar a informação.
Já não é preciso assassinar, antes pelo contrário, deixa-se correr toneladas de informação, é a melhor maneira de desinformar. Não há filtro capaz de separar o joio do trigo. É a realidade em que vivemos.
Hoje não existe editor ou programador que escrutine o que é bom ou o que é mau.
Jorra e jorra quantidades imensas de diarreias cibernéticas, todos os dias. E todos se perdem neste mar de informação e desinformação.
É a melhor táctica para uma estratégia muito bem montada.

Rick disse...

A possibilidade de alguns de nós sermos macacos infinitos é precisamente a vantagem da internet que dá essa liberdade que os meios ditos profissionais não permitem.E assim como tudo que é bom é reconhecido em contraste com o que não é,assim tambem a verdade pode ser encontrada no meio de muitas mentiras!

Apache disse...

Grande "post"!

contradicoes disse...

Muito interessante esta abordagem. Mas eu que faço parte da boçalidade cibernética, que não está sujeito a qualquer filtro nem critério de selecção para o tipo de abordagem, questiono?
Não será preferível isso do que estando sujeito a todas as filtragens critérios de quem coordena os corpos editoriais, permite que cheguem aos telespectadores no caso das televisões, aos rádio-ouvintes ou a quem adquire um jornal, ver ouvir ou ler verdadeiras barbaridades escritas pelo ditos profissionais da comunicação social?
Penso que este tipo de actuação é quanto a mim muito mais grave do que o comportamento boçal de alguns internautas.