sexta-feira, janeiro 02, 2009

Miguel Sousa Tavares - Por muito menos do que isto fizeram-se revoluções


Miguel Sousa Tavares

Expresso 27/12/2008

Capitalismo, dinheiro e ética

«Há milhares de empresas, grandes, pequenas e gigantes, espalhadas por esse mundo fora, onde a gestão é bem feita, o trabalho é sério, a produção é de qualidade e a comercialização é adequada. E, todavia, estão à beira da falência, suspendendo a produção, fechando para férias não desejadas nem previstas ou suplicando a ajuda dos governos. E, porquê? Porque o mercado não quer os seus produtos, porque não são concorrenciais? Não, porque o mercado não tem dinheiro para comprar o que produzem. E não tem, porque as poupanças médias foram sorvidas, melhor dizendo, roubadas, pelo sector financeiro especulativo. Não há dinheiro na mão dos consumidores porque os Oliveira Costa, os Rendeiros, os Madoff deste mundo agarraram nas poupanças que lhes confiaram e desbarataram-nas de duas maneiras: ou aplicando-as em pura especulação, sem qualquer critério de prudência e boa gestão; ou, pura e simplesmente, roubando-as, em benefício próprio.

Bernard Madoff representa o ponto extremo do capitalismo de sarjeta tão caro ao espírito "laissez faire, laissez passer" que os liberais dos tempos modernos nos venderam como cartilha tão infalível quanto a do marxismo-leninismo. Ambas têm em comum a capacidade notável de conduzir as nações à ruína, em benefício de uma restrita elite: a da casta dos "play-makers" da alta finança ou a dos quadros do Partido. Nicolae Ceausescu, que chefiava uma nação comunista e miserável, vivia rodeado de mordomias só comparáveis às dos marajás da Índia imperial: mas era tido e louvado como um 'revolucionário socialista'. Bernard Madoff, que simbolizava exemplarmente o sonho americano de vir do nada até ao infinito, era cativante, 'moderno', filantropo, sócio do Palm Beach Country Club, garantia de seriedade e profissionalismo: um génio da finança, que se dava ao luxo de não aceitar qualquer cliente para a sua 'grande mentira'. Com uma diferença: Ceausescu só enganava quem se queria deixar enganar; Madoff enganou todos, ao longo de trinta anos, e, entre eles, os melhores bancos do planeta, a fina flor dos analistas financeiros e as autoridades de suposta vigilância dos mercados americanos. Ah, e outra diferença: Ceausescu acabou preso e executado; Madoff está em casa, de pulseira electrónica e rodeado de luxo. Dir-me-ão que Ceausescu foi responsável pela morte de milhares de pessoas e Madoff não. Até certo ponto: Madoff levou e levará milhares de pessoas ao desemprego, milhares de famílias à miséria, dezenas de organizações de beneficência ao fim, alguns, mais desesperados, ao suicídio. Estou como o dr. Mário Soares: terá de haver sangue. Mas, forçosamente, suor e, desejavelmente, lágrimas.

Isto não é apenas uma crise económica, nem o resultado das aventuras criminosas de algumas ovelhas tresmalhadas do rebanho. Isto é, sobretudo, o resultado de uma crise de valores - políticos, sim, mas também éticos. É o resultado de o Estado se ter demitido do seu papel de vigilância e controlo dos poderosos e de a sociedade se ter dispensado de questionar a origem dessas súbitas e espantosas fortunas que cresceram debaixo dos nossos pés. O dinheiro deixou de ser um ponto de chegada para passar a ser um ponto de partida. Dantes, era necessário justificar socialmente a origem do dinheiro e nem mesmo os novos-ricos legítimos eram bem aceites; hoje, é o dinheiro que, por si só, justifica tudo. Lembro-me de o meu pai me contar que, num julgamento onde participava, apareceu para testemunhar um senhor com um ar importantíssimo e cheio de si que, perguntado pela profissão, respondeu:

- Capitalista!

A sala rebentou numa gargalhada e o juiz interpelou-o:

- Isso não é profissão...

- Pode crer que é, sr. dr. Juiz! - volveu o tipo, sempre seguro de si e da sua importância. Sem o saber, estava, contudo, apenas a antecipar o que viria a ser a regra banal dos tempos de hoje.

Nesses tempos de então, o homem mais rico de Portugal, António Champalimaud, detestava que alguém se atrevesse a tratá-lo por 'capitalista' e definia-se sempre como um 'industrial' - palavra que, a seus olhos, tinha quase uma conotação marxista, de quem se impunha pelo seu trabalho, pelo seu talento, pela obra feita e pela riqueza criada. Hoje, um dos homens que integra a lista dos dez mais ricos de Portugal, entrevistado neste mesmo jornal há tempos, revelava com orgulho que não dava trabalho a mais do que meia dúzia de 'colaboradores'. Era e é um mero especulador bolsista, aplicando a velha máxima marxista de que o dinheiro gera dinheiro e convencido de que é um génio da finança e da 'gestão'. Espero que esteja agora afogado nos fundos Madoff ou em barris de petróleo comprados a 147 dólares o barril, enquanto nós e o país sofríamos com os preços inflacionados por estes abutres do sistema...

A crença de que a sociedade e o poder político se tinham desinteressado de questionar a origem das fortunas e a legitimidade dos negócios puramente especulativos levou a uma espécie de embriaguez moral, que corrompeu sem remissão excelentes quadros financeiros, extremosos chefes de família e devotos cristãos sem mácula. Quando leio que as administrações do BCP - esse "case study" da excelência bancária - criaram dezassete "off-shores", que, entre outras coisas pouco recomendáveis, poderão ter servido também para comprar anonimamente acções do próprio branco e assim fazer subir artificialmente as suas cotações (e, logo, fazer empolar os resultados do exercício e os prémios de gestão dos próprios administradores), realizo que isto, a confirmar-se, é a completa falta de vergonha. Eram os gestores a usarem o dinheiro do banco para, indirectamente, se enriquecerem a si próprios. Ou seja, roubarem o próprio banco que geriam. E ainda querem a prisão preventiva para quem assalta carros?

Vi há dias uma manifestação de desempregados do Norte, gente que viu ir à falência uma série de empresas que nem sequer lhes pagaram os salários até ao encerramento. Eram umas duas centenas de trabalhadores, em representação de cerca de 6000 que estão nestas condições e que reclamavam uma coisa muito simples: se há dinheiro do Estado para pagar os buracos dos bancos, por que não há dinheiro para lhes pagar a eles e depois ir executar as empresas? De facto, eles têm toda, absolutamente toda, a razão. Trata-se de 90 milhões de euros que lhes são devidos - em comparação com os mil milhões já injectados nessa vergonha do BPN ou os 450 milhões de aval (obviamente perdidos) nessa brincadeira do BPP. É indispensável que haja um mínimo de moralidade em toda esta escandaleira. É preciso que não sejam os contribuintes e os trabalhadores sem culpa alguma a pagar a factura dos crimes alheios, para que eles fiquem apenas menos ricos e impunes e possam, mais adiante, retomar o "business as usual" e voltar a reclamar os mesmos privilégios, atenções e louvores do costume. Por muito menos do que isto fizeram-se revoluções

17 comentários:

Castanheira disse...

Chega de rapinagem. Chega de corrupção. Chega de larápios. Chega... chega... chega.

Zorze disse...

Diogo,

Por isso, Cheira-me a Revolução!

Abraço,
Zorze

Anónimo disse...

O que este senhor não diz, seja por ignorância seja por interesse, é que o problema não está nos banqueiros, está no sistema monetário exponencial! E agora, quem vier atrás, que fechemos a porta :/

E escusamos de pedir cabeças e sangue, que isso é do tempo das barbáries... o que falta é encontrar uma solução

xatoo disse...

Pois é. o Anónimo está repleto de razão. No estado de degradação a que isto chegou até se dá a entender que um autor burguesóide de literatura de cordel como MST pode ter a solução para uma crise que não afecta a classe social dele; Não nos pode ajudar em nada, nem que seja apenas na compreensão da situação. O embuste dos banqueiros vs sistema financeiro é lapidar. E aquela bicada no "marxismo-leninismo" é sintomática - o palerma quer fazer crer que a sigla tem alguma coisa a ver com a presente derrocada do capitalismo ou que este pode ter cura, que não seja outra que a regulação da produção e do consumo.
O imbecil poderá eventualmente querer "regulação", mas em estado neutro, que não lhe afecte os proventos. Ora na luta de classes não pode haver neutralidade. Quem advoga a conciliação entre operários e banqueiros está a defender os que têm os meios e as condições de controlo para oprimir os mais fracos. Pó caralho mais o MST

contradicoes disse...

As afirmações sucedem-se
Nas constantes intervenções
Dos políticos que se esquecem
Que eles não têm as soluções

Para resolver os problemas
Que afectam esta sociedade
Eles usam os mesmos esquemas
Para esconderem a verdade

O país está endividado
Vive acima das possibilidades
Os empréstimos solicitados
Espelham pois a realidade

O desemprego galopante
Que afecta muita gente
É por demais preocupante
E a pobreza é evidente

O que pode acontecer
A este povo martirizado
Quando não tiver de comer
Vivendo pois, agonizado

Não existem soluções
No nosso quadro político
Protegem-se pois os patrões
Deixa-se o trabalhador aflito

Com os salários em atraso
E sem dinheiro para comer
Estas políticas dão azo
Para ninguém mais, nelas querer

Mas não se muda o figurino
Para se evitar a especulação
O banqueiro é muito fino
Rouba a Bem da Nação

Aviltante tal procedimento
De quem detém este negócio
É pois meu convencimento
Que o seu fim não está próximo

As desigualdades a aumentar
A um ritmo alucinante
Isto não parece acabar
Mas é muito preocupante

Diogo disse...

Anónimo e Xatoo,

Eu sei que o problema está no sistema. Mas o sistema manter-se-á enquanto houver banqueiros a engordar com ele. Os banqueiros compraram os políticos, os media e os tribunais. São todos a puxar para o mesmo lado. A solução poderá não ser pacífica. Porque existem muitos milhões a serem assassinados pelo «sistema» - seja à morteirada, seja à fome, seja por falta de cuidados de saúde, seja por miséria, seja por desesperança.

Ana Camarra disse...

Diogo

Li tudo
O tgexto do Miguel Sousa Tavares, que contem verdadades, perspectivas correctas e incorrectas li os comentários todos até aqui, no final concordo com o teu (porque será que isto não me espanta?!).
Mas sou Marxista, acredito noutra sociedade diferente,. acredito que o capitalismo se está a comer a si próprio, que é um sistema desumano e já agora com muitas falhas.
Diram que aquilo que eu acredito também.
Talvez!
Eu pessoalmente considero que ainda não foi colocado em prática.
Quanto ao exemplo de MST face ao extinto ditador romeno é relativo, mo homem podia dizer que era socialista, andam para aí outros aqui, em Portugal que o dizem e nem por isso o são...
Eu também podia dizer que sou a rainha da Atlântida.

beijos

Diogo disse...

Ana,

Também eu acredito que o capitalismo tem os dias contados. A tecnologia, qualquer que seja o sistema usado para a medir, está a evoluir em progressão geométrica. E a tecnologia produz trabalho. Quanto mais evoluída for, mais trabalho produz.

A robotização, a informatização, a automatização e a inteligência artificial estão a substituir o trabalho. Mas, graças ao sistema, em vez de beneficiar a humanidade, está e enviar milhões de indivíduos para o desemprego e portanto para a miséria. No processo, o actual sistema destrói-se a si próprio, porque quantos menos consumidores com salários houver, menos vendas haverá e por aí fora até ao fim da produção privada.

O que defendo é que, antes de chegarmos a um desastre completo, com sofrimento indizível para milhares de milhões, forcemos uma mudança de sistema – uma revolução. Dividamos o trabalho por todos. Seis (ou quatro, ou dois) meses de trabalho por ano para todos e subida de salários. A tecnologia que aproveite a todos e não apenas a meia dúzia. Já leste «O Horror Económico» de Viviane Forrester? É extraordinário.

Um Beijo.

Ana Camarra disse...

Ainda não li, terei de ler.

Beijos

xatoo disse...

Viviane Forrester?
a senhora é romancista e crítica literária no conservador Le Monde.
Escreveu uma obra de ficção, entretanto já desactualizada onde lida com a inconsciência de classe que o sistema produziu.
Fala e apela emocionalmente para a angústia dos excluídos, cócegas no grelo, é uma especialista na transmissão de "bytes", análise estrutural népia, só futurologia sem consistência factual.
No entanto há quem sugira que a ciência se devia converter mais em literatura.
bom proveito.

Ana Camarra disse...

Oh Xatoo

O blogue não é meu, mas esse toipo de linguagem não me parece correcta.
De qualquer das formas só poderei julgar depois de ler, não é?!

Diogo, peço desculpa porque de facto o espaço não é meu.

xatoo disse...

ok, embora as personagens virtuais não tenham sexo, concordo que o Diogo apague "o grelo"; de qualquer modo quero esclarecer que não me referia ao grelo ou outras partes de alegad@s leitores mas apenas aos grelos-alvo sujeitos aos disparos psico-emocionais da Viviane, uma gaja cheia de humor, eheheheh

Diogo disse...

O Xatoo, nalgumas coisas, parece ter parado no século XIX. Não concebe o exponencial desenvolvimento tecnológico e por conseguinte o fim do emprego. Para ele, estaremos eternamente condenados a trabalhar em cadeias de produção nas fábricas, com uma elite a planear.

Anónimo disse...

Ciumento!!?

alf disse...

O problema está nas regras do sistema que permitem o crescimento da desigualdade na distribuição da riqueza. Já se sabe que impedir que o «dinheiro gere dinheiro» é essencial, por isso a igualdade de oportunidades, a penalização fiscal das heranças, o pagamento de dividendos em sociedades anónimas, etc, etc.

Só que as regras existem para serem violadas, não é? Então, é preciso estar sempre a refazer as regras, para cada violação encontrar o remédio. E isso não foi feito porque não interessava. Não interessava a ninguém: nem aos banqueiros nem a nenhuma dos milhões de pessoas que todos os dias joga na bolsa na busca de um rendimento que não resulta da produção de coisa nenhuma. Como nunca interessou neste pais fomentar o pre-escolar porque isso conduzia à igualdade de oportunidades e isso não convinha à classe média e alta. E ainda hoje pretender que o ensino seja mais eficiente parece ser coisa que assusta muita gente.

Assim, basicamente, esta crise resulta da cupidez e da estupidez dos humanos.

Se, mesmo agora, eu resolver lançar um qualquer esquema de pirâmide, não faltarão pressurosos aderentes, crentes que a coisa há de estoirar para quem vier a seguir e não para eles.

Portanto, como a humanidade é estúpida, vai aprendendo apenas com as catástrofes que é incapaz de prevenir e, infelizmente, incapaz de compreender as mais das vezes.

Mas como nem todos os humanos são estupidos nem sofrem de cupidez, esperemos que a crise dê oportunidade a uma nova geração de lideres com uma melhor visão.

Anónimo disse...

Ola Diogo... preciso urgente falar com voce, voce poderia me passar um email para que possamos conversar...e muito importante para mim.... obrigada...meu email e mayracarolline@gmail.com...obrigada

Anónimo disse...

Ola Diogo... preciso urgente falar com voce, voce poderia me passar um email para que possamos conversar...e muito importante para mim.... obrigada...meu email e mayracarolline@gmail.com...obrigada