Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
O Preço da Segurança
Publicado na Visão em 26 de Outubro de 2006
Nos países mais desenvolvidos está em curso uma mudança profunda nas prioridades dos governos, com enormes implicações para o relacionamento entre cidadãos e governos. A mudança pode resumir-se assim: do bem estar social para a segurança. Até à década de 1980, o bem estar social tinha total prioridade na acção governamental. A qualidade das políticas sociais na área do trabalho, saúde, educação e segurança social era o critério por que se aferia a qualidade da governação. A segurança dos cidadãos frente à violência, o crime e os acidentes estava intimamente ligada ao bem estar, sendo vista como resultando dele. Por sua vez, a segurança colectiva estava assegurada pela ordem internacional multilateral assente na Guerra Fria.
Com o triunfo do neoliberalismo e o colapso da União Soviética, tudo começou a mudar. As políticas sociais começaram a perder prioridade e deixaram de ser vistas como um factor de segurança. Esta passou a ser vista como a nova prioridade dos governos, ao mesmo tempo que a segurança internacional foi confiada aos EUA. O aumento da criminalidade, a imigração e, por fim, o terrorismo vieram dar força acrescida a esta mudança. Aumentaram os orçamentos públicos da segurança, ao mesmo tempo que surgiu uma nova indústria, a indústria da segurança, hoje uma das mais rentáveis.
Esta mudança tem um impacto múltiplo. Na área do bem estar social, passaram a dominar duas ideias: pode faltar dinheiro para as políticas sociais mas não pode faltar para a segurança; o declínio do bem estar (e o aumento das desigualdades) não é considerado um factor de insegurança. Nas relações entre cidadãos, as solidariedades básicas, a hospitalidade, a curiosidade desprevenida e a entreajuda vão sendo substituídas pela suspeita e temor de estranhos, xenofobia, preferência pelo familar e privado, condomínios fechados e, no limite, guerra civil. O vizinho passou a ser um estranho e, potencialmente, um inimigo. E o mesmo se passa nas relações internacionais. Para além da lógica belicista e do unilateralismo, floresce a moda dos muros, transformando os países igualmente em condomínios fechados. Muros planeados ou em curso: 747 km entre Israel e a Palestina; 814 km entre a Arábia Saudita e o Iraque; 1120 km entre os EUA e o México.
Por último, a prioridade absoluta da segurança pode vir a ter um impacto devastador na democracia, porque torna possível o ataque à democracia em nome da defesa desta. A vigilância começa a ser permanente e indiscriminada (por exemplo, as contas pagas com cartões de crédito são globalmente monitoradas). Em resultado, os governos sabem cada vez mais sobre as acções dos cidadãos e os cidadãos, cada vez menos sobre as acções dos governos. Em nome da guerra contra o terrorismo, cometem-se atrocidades jurídicas, de que o exemplo mais extremo é "a lei das comissões miltares" que acaba de ser promulgada nos EUA. Nos termos desta lei, qualquer não cidadão que seja declarado "combatente inimigo ilegal", pode ser detido indefinidamente, torturado em violação da Convenção de Genebra, e a confissão obtida sob tortura utilizada como prova. Mas a medida mais extrema é a eliminação do habeas corpus, uma garantia dos acusados desde o século XII. O detido não pode conhecer as razões da detenção nem questioná-las perante um juiz independente. Isto significa que, se alguém for detido por engano (erro de identificação) não tem nenhuma instância a que recorrer para o dizer e provar. Um advogado americano, almirante na reserva, declarou no Congresso que, com esta lei, os EUA se transformavam numa república das bananas. Este tipo de leis, cuja eficácia é duvidosa, suscita esta pergunta: até onde é possível desfigurar a democracia?
O Preço da Segurança
Publicado na Visão em 26 de Outubro de 2006
Nos países mais desenvolvidos está em curso uma mudança profunda nas prioridades dos governos, com enormes implicações para o relacionamento entre cidadãos e governos. A mudança pode resumir-se assim: do bem estar social para a segurança. Até à década de 1980, o bem estar social tinha total prioridade na acção governamental. A qualidade das políticas sociais na área do trabalho, saúde, educação e segurança social era o critério por que se aferia a qualidade da governação. A segurança dos cidadãos frente à violência, o crime e os acidentes estava intimamente ligada ao bem estar, sendo vista como resultando dele. Por sua vez, a segurança colectiva estava assegurada pela ordem internacional multilateral assente na Guerra Fria.
Com o triunfo do neoliberalismo e o colapso da União Soviética, tudo começou a mudar. As políticas sociais começaram a perder prioridade e deixaram de ser vistas como um factor de segurança. Esta passou a ser vista como a nova prioridade dos governos, ao mesmo tempo que a segurança internacional foi confiada aos EUA. O aumento da criminalidade, a imigração e, por fim, o terrorismo vieram dar força acrescida a esta mudança. Aumentaram os orçamentos públicos da segurança, ao mesmo tempo que surgiu uma nova indústria, a indústria da segurança, hoje uma das mais rentáveis.
Esta mudança tem um impacto múltiplo. Na área do bem estar social, passaram a dominar duas ideias: pode faltar dinheiro para as políticas sociais mas não pode faltar para a segurança; o declínio do bem estar (e o aumento das desigualdades) não é considerado um factor de insegurança. Nas relações entre cidadãos, as solidariedades básicas, a hospitalidade, a curiosidade desprevenida e a entreajuda vão sendo substituídas pela suspeita e temor de estranhos, xenofobia, preferência pelo familar e privado, condomínios fechados e, no limite, guerra civil. O vizinho passou a ser um estranho e, potencialmente, um inimigo. E o mesmo se passa nas relações internacionais. Para além da lógica belicista e do unilateralismo, floresce a moda dos muros, transformando os países igualmente em condomínios fechados. Muros planeados ou em curso: 747 km entre Israel e a Palestina; 814 km entre a Arábia Saudita e o Iraque; 1120 km entre os EUA e o México.
Por último, a prioridade absoluta da segurança pode vir a ter um impacto devastador na democracia, porque torna possível o ataque à democracia em nome da defesa desta. A vigilância começa a ser permanente e indiscriminada (por exemplo, as contas pagas com cartões de crédito são globalmente monitoradas). Em resultado, os governos sabem cada vez mais sobre as acções dos cidadãos e os cidadãos, cada vez menos sobre as acções dos governos. Em nome da guerra contra o terrorismo, cometem-se atrocidades jurídicas, de que o exemplo mais extremo é "a lei das comissões miltares" que acaba de ser promulgada nos EUA. Nos termos desta lei, qualquer não cidadão que seja declarado "combatente inimigo ilegal", pode ser detido indefinidamente, torturado em violação da Convenção de Genebra, e a confissão obtida sob tortura utilizada como prova. Mas a medida mais extrema é a eliminação do habeas corpus, uma garantia dos acusados desde o século XII. O detido não pode conhecer as razões da detenção nem questioná-las perante um juiz independente. Isto significa que, se alguém for detido por engano (erro de identificação) não tem nenhuma instância a que recorrer para o dizer e provar. Um advogado americano, almirante na reserva, declarou no Congresso que, com esta lei, os EUA se transformavam numa república das bananas. Este tipo de leis, cuja eficácia é duvidosa, suscita esta pergunta: até onde é possível desfigurar a democracia?
13 comentários:
Até onde é possível desfigurar a democracia? Até ao ponto de ter um Presidente que diz pérolas como esta:
"Os nossos inimigos são inventivos e cheios de recursos, mas nós também somos. Eles nunca param de pensar em novas formas de fazer mal ao nosso país e ao nosso povo, e nós também não."
"Our enemies are innovative and resourceful, and so are we. They never stop thinking about new ways to harm our country and our people, and neither do we." — Washington, D.C., Aug. 5, 2004
pode desfigurar-se a democracia até ao ponto de "O Processo" de Kafka, em que os condenados e abatidos como cães, sem conhecimento das causas, podemos ser todos nós...
O Kafka, hoje, sentia-se um bocado às aranhas se se apanhasse nas malhas dos 'modernos' sistemas judiciais.
O 1984 de George Orwell chegou atrasado mas chegou. Vivam a globalização e os chips e o terrorismo.
ah ah ah concordo contigo joão
o Prof. BSS é organizador de um livro que deveria ser mais divulgado nesta época de consumo compulsivo
trata-se
"De um Conhecimento Prudente para uma Vida Decente"
(edit. Afrontamente,2003)
Ò xatto, mas olha que esse livro está longe de ser uma pérola, digo eu, leitora...
Sofocleto: já te respondi à questão que me pusestre sobre Cuba, lá na minha baiúca. Como é longo, não transcrevo para aqui para não te abusar do espaço; mas acaba assim:
"Há quem mal ouça falar deste tipo de coisas pense logo que existem modelos que podem ser decalcados a papel quimico para o nosso caso; é o caso do tal neofascista "Lidador" que frequenta lá o teu blogue. São os básicos do costume.
O nosso caso é outra discussão, que não deve ser misturada com esta"
o Lidador, para ainda não ter aparecido, deve ter ido dar concertos de Natal aos marines do Iraque, armado em Bob Hope, eheheh
inominável:
se leste, sabes que o livro é uma condensação de ensaios de mais de duas dúzia de autores, desde o Germinal Cocho sobre a teoria da complexidade, até Immanuel Wallerstein, Isabel Stengers, etc passando pelo Prof. João Caraça, pelo Francisco Louçã sobre Economia e pelo Jorge Dias de Deus (sobre Heinsenberg e os limites da ciência e da técnica, salvo erro)
De qual, ou do que é que não gostaste?
Não gostei, por exemplo, logo da ideia que está por detras do livro, isto é, de responder às críticas de um outro cientista português (um físico, se não estou em erro) acerca das falácias de uma epistemologia pós-moderna (que o tal físico anuncia ou denuncia numa outra obra bastante conhecida)... Acho tb que a evocação da obra a propósito deste post não é adequada, exceptuando o título...
ainda assim, "De um Conhecimento Prudente para uma Vida Decente" é um título infeliz: o que é uma vida decente? para que padrões aponta? e onde é que o conhecimento da tal pós-modernidade (que ninguém sabe muito bem o que é, foi o se ainda será) entra aqui??? este título, que parece tão poético (repara que até rima) é um grande ovo...
quanto aos artigos em si, gostei bastante da maioria deles e confesso que teria que regressar a eles para te dar um juízo mais fundamentado...
Para desfigurar alguma coisa é preciso, em primeiro lugar, que essa coisa exista. A democracia nunca existiu, logo não pode ser desfigurada.
Isto diria tudo acerca do artigo, mas há mais:
Sem desmascarar TODAS as mentiras que estão por detrás do 11 de Setembro, sem desmascarar aquela conspiração monstruosa; isto é: sem desmascarar a estratégia de dominação global e a correspondente "campanha dse desinformação e propaganda" consituída por campanhas manipuladoras de mentiras e enfabulações, sem desmascarar tudo isso não é possível abordar correctamente e de forma consequente a situação actual nem mobilizar os cidadãos contra este descalabro.
O descalabro não é "a prioridade absoluta da segurança" mas o facto de isso ser uma falácia, uma mentira, usada para justificar todos os arbítrios e a degradação das garantias e das condições de vida; usada para instituir uma política nazi, onde só os interesses dos grandes criminosos são garantidos a todo o custo.
Desde que me conheço (e conheço-me há muito tempo) não me lembro de nenhum periodo em que o Mundo tivesse vivido em verdadeira paz; ou em "segurança colectiva", no dizer do texto. Isto para explicar que o fim da guerra fria não explica coisa nenhuma, sendo este um raciocínio mecanicista e demagógico em que impera a lógica da disputa como única forma de convivência internacional, numa cedência absurda à justificação e necessidade da malvadez dos governantes. Os povos terão de se entender doutro modo e talvez seja necessário destronar estes governanates e suas ideias cretinas, bem como estes argumentos da treta...
Resumindo: Numa altura em que a continuação da situação actual se torna insustentável é imprescindível insistir no caminho certo, com coragem, com clarividência, com frontalidade e sem cedências. O artigo é tacanho, não aborda as questões essenciais e contém cedências intoleráveis à "lógica" dominante, a mesma que nos conduziu até aqui.
Não se trata de escolher entre democracia e segurança, mas assegurar a democracia, única forma de garantir a segurança.
Para mim, a única solução passa pelo reforça da democracia, pela valoração da abstenção (para colocar rédea curta a todos os falaciosos, sobretudo aos que governam) e passa também pela alteração das regras de decisão da ONU, onde as decisões sobre conflitos armados internacionais têm de ser suportadas por referendos em cada país votante (incluindo, obviamente, o conflito na palestina e a punição dos abusos dos governantes israelitas).
Numa palavra: ter em conta e respeitar a opinião e vontade dos povos.
As patranhas e ideias feitas não nos levam a lado nenhum, só contribuem para agravar a situação do Mundo, como^tem acontecido até agora.
Inominável:
"a evocação da obra" veio-me a talhe de foice apenas por causa do nome de BSS, já que sobre o texto do post em si não me ocorreu nada em especial. Aliás eu tinha vindo aqui só por causa de dar aquele recado sobre Cuba, nada mais; mas depois vi-te falar na "pérola", ehehe
Normalmente estou sintonizado com o Sofocleto sobre estas questões de "segurança"
Sobre o livro: o tal fisico, que dizes que tem um livro muito famoso (responde ao BSS vinte anos depois do Discursos sobre as Ciências do BSS) é um engenheiro reformado do IST e percebe de radiografias. É um impostor que vem na peugada do Sokal naquelas discussões sobre as chamadas guerras da Ciência, enquanto o BSS é um sociólogo de reconhecido mérito internacional.
A chave está mesmo na compreensão da questão que pões:
"o que é o conhecimento da tal pós-modernidade?"
boa sorte.
Xatoo, obrigada pela tua resposta sóbria e ponderada. não sei se toda a gente concordo com a tua visão do "físico", assim como nem toda a gente concorda com o BSS... e falo com mais conhecimento de causa da obra do BSS, um sociólogo que aprecio mas que, em não menos vezes, me parece um grande ovo, isto é, dono de um discurso redondo e embrulhado para ninguém entrar...
Já vi que deixaste um link como resposta, no post seguinte... vou ler e rever...
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