quinta-feira, setembro 18, 2008

O Processo Democrático visto por Ricardo Araújo Pereira


Texto de Ricardo Araújo Pereira

Da obra: Boca do Inferno


O congresso está no meio de nós

Nunca fui a um congresso partidário, mas tenho pena: nutro grande interesse por manifestações religiosas em geral. E gostaria muito de ter estado em Santarém, no congresso do PS. Os congressos do PS e do PSD são o grande palco da democracia portuguesa. É aquela gente que escolhe o primeiro-ministro do país. O resto dos portugueses limita-se a ir às urnas dizer se prefere começar a ser governado pelo senhor que os socialistas escolheram ou pelo senhor escolhido pelos sociais-democratas. E, quatro anos depois, troca.

Os candidatos a primeiro-ministro são, por isso, designados por uma espécie privilegiada de cidadão que se chama «delegado ao congresso». «Delegado ao congresso» significa" em terminologia política, «o maior da sua aldeia». Trata-se de um indivíduo que, à custa, de estratagemas de vária ordem, conseguiu obter, dos militantes da sua área de residência, um mandato para os representar no congresso. Um dos estratagemas mais frequentes e bem sucedidos é o seguinte: o aspirante a delegado casa com uma rapariga que tenha uma família grande e, depois, mobiliza os primos todos para votarem nele. É uma manobra que requer um módico de astúcia política e, dependendo da aparência física da rapariga, uma maior ou menor capacidade de sacrifício. Uma vez no congresso, O delegado opta pelo candidato que melhor serve Portugal - isto se, por extraordinário acaso, as necessidades de Portugal coincidirem com os interesses do delegado e dos que o mandataram. Como é raro Portugal necessitar de ver o seu caminho facilitado nas concelhias do PS, os interesses do delegado quase nunca coincidem com os do país - circunstância que só fica mal ao país.

No entanto, nem tudo nos congressos é tão transparente e louvável. Há gestos que constituem apenas dispêndio escusado de energia, e isso verificou-se, uma vez mais, neste congresso socialista. A tentativa de empolgar os delegados com música e gritaria (normalmente, duas actividades a cargo de Jorge Coelho, que canta e grita com igual entusiasmo) é inútil. Aquela gente já anda empolgada. O partido é deles e está a governar Portugal como bem entende. É o resto do país que precisa de ser empolgado. E, nesse sentido, a entrada de José Sócrates ao som da música do Gladiador pode ter dado origem a mal-entendidos. Se Portugal fosse um circo romano (passe o desprimor para com o circo romano), Sócrates podia ser um gladiador, mas os portugueses seriam dez milhões de cristãos, prestes a serem apresentados aos leões.

Mas o congresso do PS deu também um sinal claro e positivo ao país: é possível um aglomerado razoável de pessoas estar na presença de José Sócrates sem começar a manifestar-se contra o seu governo. Já não é mau. Além disso, o congresso demonstrou ainda que, neste momento, o PS, para Sócrates, é igual a Portugal: quer num sítio, quer noutro, não se pode dizer que tenha uma oposição particularmente credível e consistente. Haja um português a quem a vida corre bem.
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4 comentários:

Helena Simões disse...

Este Ricardo araújo, cativa as pessoas porque a brincar, a brincar vai dizendo todas as verdades. A simplicidade desconcertante com que aborda os temas, o humor fino que aplica, fazem com que a sua intervenção a favor de uma dada causa tenha mais efeito que mil discursos de pessoas “cheias de razão” e com argumentos sérios mas não consigam provocar emoções fortes. A capacidade de impor uma “razão” não depende apenas dos factos em si, mas sobretudo da forma como a emoção das pessoas é catalizada para aquele assunto.

Ana Camarra disse...

Pronto é um retrato engraçado, com o bom humor que é habitual.
No Ps não sei como funciona a eleição dos delegados.
No PSD sei que são nomeados, mais ou menos de cima para baixo e houve alturas que pagavam para ir, o que a mim me parece absurdo, Porque inviabiliza a presença de militantes empenhados, mas sem recursos.
No partido onde milito, PCP, os delegados são eleitos nas celulas de base pelos seus iguais, a ideia é representa-los, ou seja a celula de trabalhadores comunas da fabrica X com 30 militantes elege por exemplo 3, que discutem com os outros as propostas, as alterações, as teses...
Andamos a fazer isso á meses.
e são esses que tem direito a voto, voto que se pretende represente quem os elegeu...
Quanto aos custos da deslocação de camaradas de todo o país para um local especifico, há um espirito de entre ajuda, os camaradas do local do Congresso disponibilizam as suas casas para alojar outros, isto continua a ser um exemplo.
desculpa o tamanho do comentário, mas não está tudo no mesmo saco.

beijo

Diogo disse...

Tens toda a razão Ana Camarra,

Quando eu falei no «Processo Democrático» referia-me ao centrão PS-PSD e ao anão CDS. Estes «partidos políticos» são o instrumento do grande dinheiro para controlar o país. Por isso, são eles que têm os grandes financiamentos e todo o espaço mediático. Para que haja a famosa «alternância democrática», que Ricardo Araújo Pereira denuncia de forma genial.

Um beijo.

Zorze disse...

O RAP é o maior humorista português da actualidade. E o mais lúcido.

Abraço,
Zorze