Benedict XVI - Obscurum per obscurius
Milhares de muçulmanos pedem que o Papa não visite a Turquia.
A visita de quatro dias é apontada como uma oportunidade para cicatrizar as mágoas com o mundo muçulmano após o papa ter citado um imperador bizantino dizendo que o Islão era violento e irracional.
Falando no Vaticano neste domingo, Bento XVI disse que queria que a visita mostrasse a sua "sincera amizade e estima" pela Turquia e pelo seu povo.
Terá esta animosidade do mundo islâmico pelo Papa Bento XVI alguma razão de ser?
Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
A Exactidão do Erro
Publicado na Revista Visão em 28 de Setembro de 2006
O comentário no Ocidente ao discurso do papa alinhou-se pelas seguintes ideias: não foi um discurso do papa, foi um discurso do professor; talvez o papa tenha cometido um erro ao escolher a citação do Imperador de Bizâncio, mas isso não justifica as violentas reacções no mundo islâmico; o enfoque central do discurso foi a relação entre a razão e a fé, e a crítica do moderno secularismo ocidental.
Milhares de muçulmanos pedem que o Papa não visite a Turquia.
A visita de quatro dias é apontada como uma oportunidade para cicatrizar as mágoas com o mundo muçulmano após o papa ter citado um imperador bizantino dizendo que o Islão era violento e irracional.
Falando no Vaticano neste domingo, Bento XVI disse que queria que a visita mostrasse a sua "sincera amizade e estima" pela Turquia e pelo seu povo.
Terá esta animosidade do mundo islâmico pelo Papa Bento XVI alguma razão de ser?
Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
A Exactidão do Erro
Publicado na Revista Visão em 28 de Setembro de 2006
O comentário no Ocidente ao discurso do papa alinhou-se pelas seguintes ideias: não foi um discurso do papa, foi um discurso do professor; talvez o papa tenha cometido um erro ao escolher a citação do Imperador de Bizâncio, mas isso não justifica as violentas reacções no mundo islâmico; o enfoque central do discurso foi a relação entre a razão e a fé, e a crítica do moderno secularismo ocidental.
Por que razão nenhum destes argumentos é convincente? O papa falou como papa e escolheu o contexto que lhe permitisse romper mais claramente com a doutrina papal até agora vigente. Essa doutrina, vinda do Concílio Vaticano II e continuada pelo Papa João Paulo II, era a do ecumenismo e do diálogo entre religiões, no pressuposto de que todas são um caminho para Deus e têm, por isso, de ser tratadas com igual respeito, mesmo que cada uma reclame uma relação privilegiada com a Revelação. O ecumenismo obrigava a considerar como desvios ou adulterações o uso da violência como arma de afirmação religiosa. Esta posição é desde há muito questionada pelo actual papa, para quem a superioridade da religião cristã está na sua capacidade única de compatibilizar a fé e a razão: agir irracionalmente contradiz a natureza de Deus, uma verdade perene que decorre da filiação do Cristianismo na filosofia grega. Ao contrário, no Islão o serviço de Deus está para além da racionalidade. Por isso, a violência islâmica não é um desvio, antes é inerente ao Islão, o que faz do Islamismo uma religião inferior. Esta doutrina está bem documentada na sua condenação dos teólogos mais avançados no diálogo ecuménico, na sua recusa em designar o Islão como uma religião de paz, na sua posição contrária à entrada da Turquia na União Europeia, dada a incompatibilidade essencial entre Islamismo e Cristianismo e ainda na sua convicção de que o Islão é incompatível com a democracia.
É, pois, claro que o papa não cometeu um erro. Foi exacto no modo como formulou a sua provocação. Aliás, se o seu discurso pretendesse ser uma lição de teologia, ela seria de péssima qualidade. Porque não referiu o contexto da conversa entre o imperador e o persa e ocultou o passado beligerante e cruzadista do primeiro? Porque não citou outras opiniões contemporâneas totalmente contrárias à que preferiu? Porque não referiu que em qualquer das religiões abraâmicas há preceitos que podem justificar o recurso à violência, assim tendo sucedido em nome de todas elas? Perante estas interrogações, é necessário analisar o discurso do papa pelos seus reais objectivos políticos. O primeiro e o mais óbvio é o de apor o selo do Vaticano na guerra de Bush contra o Islão e na guerra de civilizações mais vasta que a fundamenta. Tal como João Paulo II alinhara o Vaticano com os EUA na luta contra o comunismo, Bento XVI pretende o mesmo alinhamento, agora na luta contra o Islamismo. Em seu entender, perante o avanço do Islão a resposta tem de ser mais dura, e precisa do poder temporal para se concretizar. Tal como aconteceu com as Cruzadas ou a Inquisição. Trata-se, pois, de uma teologia de vencedores, uma teologia teo-conservadora, paralela à política neoconservadora.
O segundo objectivo é muito mais vasto. Ao defender uma relação privilegiada entre o Cristianismo e a racionalidade grega, o papa visa estabelecer o Cristianismo como a única religião moderna. Só no âmbito dela é possível conceber "actos irracionais" (a perseguição dos judeus, as guerras religiosas, a violenta evangelização dos índios) como desvios ou excepções, por mais recorrentes que sejam. Por outro lado, visa fazer uma crítica radical a um dos pilares da modernidade: o secularismo. O papa questiona a distinção entre o espaço público e o espaço privado, e acha "irracional" que a religião tenha sido relegada para o espaço privado. Dessa "irracionalidade" decorrerão todas as outras que atormentam as sociedades contemporâneas. Daí a urgência de trazer a mensagem cristã para a vida pública, para a educação e a saúde, para a política e a cultura. O perigo desta crítica do secularismo está em que ela coincide com a posição dos clérigos islâmicos mais extremistas para quem, em vez de modernizar o Islão, há que islamizar a modernidade. Os opostos tocam-se, e não se tocam para dialogarem, senão para se confrontarem. A irracionalidade deste choque reside nas concepções estreitas de racionalidade de que se parte. De um lado, uma racionalidade que transforma a fé numa crença racional ocidental; do outro, uma racionalidade que transforma a razão na manifestação transparente da intensidade da fé islâmica. A luta contra estes extremismos é mais urgente do que nunca, pois sabemos que eles foram no passado os incubadores de guerras e genocídios devastadores. Mas pode o Ocidente lutar contra o extremismo do Oriente do mesmo passo em que reforça o seu?
21 comentários:
o Papa B16 deve ir distribuir preservativos.
Contudo é uma tarefa não prioritária, porque devido à própria idiossincrasia religiosa dos muçulmanos a incidência da Sida é muito mais baixa entre eles do que em África.
Ao Darfur, com os seus sapatinhos Ermenegildo Zegna, é que o Papa devia de ir.
Este é um acto de provocação sem precedentes e insere-se perfeitamente no actual esforço para generalizar as situações de guerra e violência, juntamente com os assassinatos no Líbano e as outreas inúmeras provocações na zona, tentando envolver a Síria e o Irão.
E um atentado contra o Papa (praticado por alguim provocador a mando da CIA) não seria um excelente pretexto para intensificar a guerra, culpando a Síria ou o Irão de terem sido os autores?
Vai-se a ver esta visita pode muito bem ser o pretexto para o terceiro Pearl Harbor de que os americanos necessitam imenso, agora "atingindo" todo o ocidente... que deverá ser chamado a custear e apoiar materialmente as atrocidades dos Americanos.
É só uma hipótese. Mas perante tanta confusão e cretinice que se lê, ainda (sobretudo nestas caixas de comentários), sobre estas questões, já nada admira.
Se assim for, a culpa recai, inteirinha, nos lacaios e provocadores que tanto se esforçam em argumentos cretinos a justificar as atrocidades dos americanos e a negar as evidências.
Muito interessante este tema do BVS.
Será que a incompletude topológica do excesso do partitivo, estipula que o que existe em si é inerentemente concebido?
Não lhe faltará a causa de si mesmo?
É que tal falta, pendente sobre o elementar, alimenta a hipotese do contínuo e faz lei daquilo que o excesso no múltiplo não consigna, a não ser a ocupação do lugar vazio, a existência do inexistente próprio do múltiplo inicial.
Esta filiação mantida da coerência demonstra que o que excede interiormente o todo, mais não faz do que nomear o ponto limite desse todo, segundo BVS.
Mas a hipótese do contínuo não é demonstrável e certamente BVS poderia garantir que as aporias suscitadas na teologia cristã nascem, em geral dessa distância enganadora que separa o tempo ficticio, o tempo em que não estamos, do tempo real, por um efeito de refracção ilusória, em durações múltiplas nas quais a simultaneidade se estende em sucessão.
Assim sendo BVS é a mera introdução de uma perda na realidade, e não pode inscrever-se numa metalinguagem científica.
Este BVS é um ponto, mas quando se trata de ir de avião para os Fóruns Sociais dos pobres, ninguém lhe tira a classe executiva debaixo das nada metafísicas bimbas.
Só agora li o post do marciano que assina "Biranta".
Atenção, caro trípode verdoso, O capitão Kirk está de volta e trás com ele um canhão de iões quânticos produzidos pela CIA e que vão fuzilar por controlo remoto todos os terráqueos que se apoximem do Grande Xalazid de Procion 3, conhecido neste lado da Galáxia por Papa Bento.
Vê lá pois se tens cuidado, porque não irás nunca conseguir afastar a Terra da Federação Galáctica Alfa 3.
lidador, és tão inocente e ignorante que até dás pena...
Entretanto Lidador, nem uma palavra sobre o texto de Boaventura de Sousa Santos. É difícil comentá-lo não é verdade?
nem uma palavra sobre o texto de Boaventura de Sousa Santos.
E achas que ele é capaz? Chavões, lugares-comuns, frases feitas não dão para tudo.
É realmente difícil comentar os textos de BVS, porque,sendo redondos, não têm ponta por onde se lhes pegue.
Na verdade ninguém os entende, e muito menos o próprio BVS, que faz parte de uma fauna de charlatães que há tempos um físico americano (Alan Sokal) pôs a nu num excelente livro que lhe aconselho a ler (Imposturas intelectuais, Gradiva).
Como dizia Richard Dawkins, "existe linguagem concebida para ser ininteligível, de modo a ocultar a ausência de verdadeiro pensamento"
BVS é um exemplo paradigmático. Não diz nada, e enrola o vácuo em novelos retóricos, sem qualquer sentido que enganam muito bem os papalvos.
O meu texto anterior poderia muito bem ter sido escrito por BVS..na verdade foi adaptado de um arrazoado de Lacan, um dos representantes da mesma fauna de BVS.
O NADA!
Como é habitual, os papalvos fingem que entendem e não se atrevem a dizer que o rei vai nu.
Têm medo que os tomem por aquilo que são:
Estultos!
o-lidador é um exemplo paradigmático. Não diz nada, e enrola o vácuo em novelos retóricos, sem qualquer sentido que enganam muito bem os papalvos...
Mas cada vez há menos papalvos. Fatalidades!
Não deixa de ser sintomática a necessidade de comentar o meu comentário. Começo a pensar que existe muito mais premeditação nalguns comentários, aqui, do que o que eu imaginava (e já imaginava muito). Fica, pois, mais uma vez demonstrado o envolvimento desta gente com os seus patrões e o seu conhecimento dos planos daqueles, bem como do seu carácter tenebroso.
Só o facto de eu ter razão justifica o sobressalto a impor uma resposta; sem imaginação, mas havia que dizer qualquer coisa.
Caro Birante, o senhor tem toda a razão para se queixar e indignar. Se eu fosse assim baixinho, feio, seboso, barrigudo, se tivesse mau hálito, esse narigão de abacaxi e escrevesse tantas asneiras, pode crer que também estaria deprimido.
Mas deixe lá...a culpa nem sequer é sua, que isto das leis de Mendel tem muita força.
Corações ao alto, fé em Deus e anime-se que podia ser pior. Imagine que além dessas desgraças todas ainda era sportinguista ou fiel do Bloco de Esguelha?
Isso é que era mau....
Perdoe-me a insistência Lidador, mas ainda nem uma palavra sobre o texto de Boaventura de Sousa Santos. É difícil comentá-lo, não é verdade?
É muito difícil comentar o vazio, caro Sofolcleto.
Por isso o meu comentário é de tal modo adequado que o repito:
Será que a incompletude topológica do excesso do partitivo, estipula que o que existe em si é inerentemente concebido?
Não lhe faltará a causa de si mesmo?
É que tal falta, pendente sobre o elementar, alimenta a hipotese do contínuo e faz lei daquilo que o excesso no múltiplo não consigna, a não ser a ocupação do lugar vazio, a existência do inexistente próprio do múltiplo inicial.
Esta filiação mantida da coerência demonstra que o que excede interiormente o todo, mais não faz do que nomear o ponto limite desse todo, segundo BVS.
Mas a hipótese do contínuo não é demonstrável e certamente BVS poderia garantir que as aporias suscitadas na teologia cristã nascem, em geral dessa distância enganadora que separa o tempo ficticio, o tempo em que não estamos, do tempo real, por um efeito de refracção ilusória, em durações múltiplas nas quais a simultaneidade se estende em sucessão.
Assim sendo BVS é a mera introdução de uma perda na realidade, e não pode inscrever-se numa metalinguagem científica.
Que se lhe oferece dizer sobre esta minha opinião, caro Sofocleto?
Nem uma palavra?
Confere com aquilo que eu penso que você tem nessa cabeça. Nem mais, nem menos!
Faço minhas as suas palavras, relativamente ao bravo Dr BVS.
Não que o não tenha em boa conta.
Só um gajo espertalhaço consegue manter-se à tona da boa vida,a beber flutes na executiva, pagos pela generosidade dos papalvos, ao mesmo tempo que faz discursos redondos sobre a pobreza mundial.
Faz-me lembrar o Louçã e o seu barquito....o Garcia Pereira e o seu barquito....
Estes esquerdistas caviar é que a sabem toda.
A técnica IURD, basicamente.
Não se preocupe que a visita vai correr bem, e nada tem de provocatório. Antes pelo contrário, se o Papa for inteligente esta visita derrubará alguns muros, tal como uma outra visita histórica de João Paulo II que deu um grande impulso à queda do império estalinista. Mesmo o esforço dos radicais, os tais que você diz que não existem, só conseguiu uma manifestação de 20 mil pessoas, auqtro vezes menos do que a recente manif de professores neste pequeno pais chamado Portugal.
Lamento por si, mas daqui não terá grandes cócós de conspiração para desenvolver. Melhores dias virão !
No último mês de Agosto tive uma revelação. Descobri que, nos seus tempos livres, o Prof. Sousa Santos é, ou foi, poeta. Muitos de nós - por sorte escapei à regra - escreveram versos durante a adolescência, os quais, atingida a idade adulta, eram geralmente deitados para o lixo. O mesmo não o fez o Sociólogo-Mor do Reino, Prof. Boaventura Sousa Santos. Tendo publicado a sua poesia, em 1964, sob o nome de Boaventura de Sousa, decidiu reincidir, em 1980, num livrinho intitulado "Têmpera", o qual surpreendentemente não faz parte do farfalhudo "curriculum vitae" que aparece na Internet.
Ainda pensei em fazer uma análise pseudo-laudatória, usando a linguagem críptica de alguns críticos literários, mas, não fosse alguém tomar a paródia a sério, acabei por desistir, oferecendo, em vez disso, excertos destas jóias líricas. No livro, publicado pela Centelha, há um pouco de tudo, desde recordações da educação católica (ver "Cravo Mal Temperado-I) a poemas pseudo eruditos (ver "Novo Mundo") passando por dislates incompreensíveis (ver "Cravo Mal Temperado-II).
Os poemas mais canhestros, mas os mais cómicos, são os de natureza erótica. Começo por citar uma estrofe retirada de "Labirinto": "...e muitas vezes sou um rego d'água/ a beber as raízes do teu corpo de nogueira". Do mesmo poema, leia-se: "A rua retesada/ guarda todos os sinais/ (...) faz parte deste tiro/ estar no alvo/ e retirar-se/ faz parte desta gota/ ser a taça e alagar-se/ faz parte deste cisma/ ter entranhas e sujar-se/ faz parte deste coito/ estar a um canto a masturbar-se". Existem muitos outros poemas, simultaneamente pretensiosos e indigentes, como o "Material de Construção", o qual abre com as seguintes linhas: "Desmamaram-se virgíneas tetas/ e os limões ali cheirando/ que da Ilha dos Amores saíram/ e do silêncio" ou o "Ode à Infância", onde surgem estrofes como " ...nas ruínas do ciclone de quarenta/ trabalho manuais sem mestre nem montra/ entram chefes guerras caracóis/ tesouras e pauzinhos/ nas rachas das meninas/ na catequese é em coro/ e em filas/ no escuro dos intervalos/ medem-se as pilas/ Boaventura tens quebranto/ dois te puseram três te hão de tirar/ se eles quiserem bem podem/ são as três pessoas da Santíssima Trindade...". Que tal?
Homem feito, Boaventura Sousa Santos ainda se orgulha da sua escrita adolescente. Num país onde não existe uma única revista de livros, a coisa passou desapercebida. Até eu levei décadas a dar com ela. Mas, ao fazê-lo, fiquei de boca aberta. Cem anos depois de Cesário Verde ter transformado a poesia portuguesa, o sociólogo de Coimbra ousava oferecer ao público uma série de poemas primários, possidónios e indecorosos, sem que ninguém - a editora, a crítica, os familiares - o tivesse caridosamente prevenido do perigo do gesto. Nos salões pequeno-burgueses do centro do país, estas coisas ainda devem ser apreciadas. Para vergonha do país. Sem ideia, sem originalidade, sem cor, a sua poesia nada exprime. Pasmada, nem ela compreende o seu tempo, nem ninguém a compreende a ela. Fala do perfume quebradiço das glicínias entre a tarde manifesta de Abril, onde o povo prepara o jantar nas folhas de auroras jacobinas e onde alguém escreve guerras contra a gritaria melada duma coca-cola morta. Que Diabo quererá dizer isto? Quando muito, o autor pretende dar lustre aos entediantes trabalhos com que, por esse mundo fora, anda a ganhar o pão de cada dia.
Mas que esperava eu encontrar naquele volumezinho descoberto, entre o pó, numa tarde de Verão? Não deveria saber que o mais certo era deparar-me com as delícias, delíqueos e delírios que agitam os arcaicos cérebros de Coimbra quando lambuzados com o verniz dos crânios que se passeiam por Wisconsin? Em 1871, na sua primeira "Farpa", Eça de Queiroz escrevia que, na literatura nacional, havia uma santa distribuição do trabalho: no final, o autor recebia a condecoração de Sant'Iago, o editor ficava com as perdas financeiras e o leitor entediava-se. Foi isto - ou pelo menos a primeira parte - que, em 1996, aconteceu a Boaventura Sousa Santos, quando o então Presidente da República, Mário Soares, lhe colocou no peito a medalha de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago de Espada. Se o leitor quiser conhecer melhor a alma do homenageado, mais não tem do que ir a um alfarrabista, onde encontrará facilmente resmas atrás de resmas da sua obra poética. Mesmo que, como eu, pertença ao sexo feminino, nada tem temer. Que eu saiba, o Prof. Sousa Santos jamais foi acusado de assédio sexual. Os seus devaneios destinam-se tão-só a fazer corar as meninas das aldeias.
Estava eu a meditar nos seus poemas, quando, ao entrar numa livraria, descobri dois manuais do 12º ano, um, intitulado "Sociologia", e outro, "Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social", redigidos por professores do Ensino Secundário, mas ambos com "a participação do Prof. Dr. Boaventura Sousa Santos". No seu conhecido estilo, eis o que o catedrático diz no prefácio ao primeiro livro: "A aprendizagem de uma disciplina como a Sociologia, disciplina pouco codificada e em grande medida devedora de uma 'pedagogia do silêncio' - do 'faz como eu' - necessita do empenhamento dos professores numa prática de pedagogia activa, através da qual se familiarizem os estudantes com uma forma de conhecimento da sociedade que, no essencial, é uma forma de educação para a cidadania". Temendo não ter sido claro, acrescentava: "Partindo deste manual, os docentes podem fomentar a capacidade de espanto e mesmo de indignação, elementos que em meu entender devem estar no cerne de um projecto educativo adequado ao tempo presente. Trata-se de um projecto orientado para combater a trivialização do sofrimento, por via da produção de imagens desestabilizadoras a partir do passado concebido não como fatalidade, mas como produto da iniciativa humana. Um passado que, tendo opções, não optou pelas que evitariam o sofrimento que foi e continua a ser infligido a grupos sociais tão vastos, em todo o mundo, e à própria natureza" (sublinhados meus). Que tal como introdução a uma disciplina supostamente científica? Não perceberão os docentes, os pais e os cidadãos que esta prosa, altamente ideológica, corresponde à agenda política de alguém que, provindo da Direita católica, se converteu, após o 25 de Abril, num dos arautos do Movimento Anti-Globalização? Desnecessário é mencionar o segundo prefácio, uma vez que, na essência, é igual ao primeiro.
Mas vale a pena analisar o seu mais recente livro, "Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justiças em Moçambique", um texto com ambições, escrito, como de costume, de parceria com um exército de assistentes universitários. Após a adopção do relativismo cultural nos 1960, muitos sociólogos adoptaram uma posição romântica, declarando, à Rousseau, que os "selvagens" eram, pelo menos, tão "bons" quanto nós. Foi uma reviravolta com consequências imprevisíveis. A incapacidade em afirmar a superioridade das tradições culturais do Ocidente contribuiu fortemente para a complacência com que muitos dirigentes do Terceiro Mundo, alguns deles criminosos, passaram a ser encarados.
Boaventura Sousa Santos transformou-se, nos finais dos anos 1970, num influente consultor jurídico dos governos dos PALOP (Angola, Moçambique e Cabo Verde). Subsidiado por organizações supostamente respeitáveis, tem feito dezenas de trabalhos em África, mas as suas investigações estão longe de ser neutras. Basta notar o plural do título, "Justiças", para nos apercebermos do preconceito subjacente aos seus trabalhos. Diante do silêncio dos professores de Direito - os quais temem criticar alguém que se refugiou numa disciplina por eles considerada esotérica - Sousa Santos tem vindo a legitimar práticas menos felizes. Não, nem tudo se equivale. Há sociedades mais iguais, mais livres, mais dignas do que outras. Sei que, se optar pelo caminho do adultério, jamais serei apedrejada em Portugal. O mesmo não me podem garantir as sociedades onde funcionam "as justiças" locais.
Não vou citar, com profusão, o que Prof. Boaventura Sousa Santos escreveu, porque isso só serviria para afastar os leitores. A fim de poderem, todavia, ficar com um gostinho do género, eis uma frase do início: "Neste capítulo, concentramo-nos numa questão específica: as relações entre o Estado e a pluralidade de direitos que, reconhecidos ou não oficialmente, regem os conflitos e a ordem social. Apesar de o paradigma normativo do Estado moderno pressupor que em cada Estado só há um direito e que a unidade do Estado pressupõe a unidade do direito, a verdade é que, sociologicamente, circulam na sociedade vários sistemas jurídicos e o sistema estatal nem sempre é, sequer, o mais importante na gestão normativa do quotidiano da grande maioria dos cidadãos". Pode parecer uma afirmação factual. Mas, subjacente a este olhar, está o desejo de legitimação de práticas legais "alternativas", com raiz numa espécie de colonialismo invertido. Segundo esta corrente, a justiça dos brancos está manchada pelo pecado original do imperialismo; a dos nativos, porque mais genuína, é evidentemente melhor.
Ao longo dos séculos, os liberais têm louvado, e com razão, a importância do Estado de Direito. Podemos encontrar já elementos desta concepção no discurso que, no século V AC, Péricles fez em honra dos mortos da Guerra do Peloponeso. Eis o que Tucídides reproduziu: "Quando se trata de assegurar a solução de disputas privadas, todo e qualquer homem é igual perante a lei. (...) Somos livres e tolerantes no que diz respeito à vida privada; mas, no âmbito do espaço público, obedecemos à lei". A Civilização Ocidental é herdeira destas palavras. Não podemos, não devemos, menosprezar este legado.
Não se pense que o facto de, em anteriores ocasiões, ter criticado Boaventura Sousa Santos releva de uma qualquer obsessão, causada sabe-se lá por que rasteiros motivos. Se escolho a sua figura é por fazer ela parte da "Nomemklatura" sociológica, não só portuguesa (via Associação Portuguesa de Sociologia), mas internacional (através das "redes" em que actualmente está organizada a investigação). Não vale a pena criticar soldados quando temos à mão um general. Na luta, há que apontar à cabeça.
Cara Anónima.
O seu texto é magistral e revela a extensão do imenso vazio que existe entre as orelhas do BSS.
Por acaso as suas iniciais não são MFM?
É que há tempos deliciei-me com um texto muito parecido. Não que o recorde com pormenor, mas o tom reconheço-o perfeitamente.
http://pascal.iseg.utl.pt/~ncrato/Recortes/MFMonica_Publico_20041204.html
Num jornal perto de si. Público e acessível ao público.
SIm, o texto não é meu, é da MFM.
Bem, a MFM deve ser uma ressabiada do pior.
O BVS foi-lhe ás nalgas e não lhe pagou...
o que O-Lidador disse...
é a prova provada da mais rotunta das ignorâncias
O texto do Sokal que ele citou como sendo de "aqui há tempos"
já tem mais de 20 anos!
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